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dezembro 29, 2006

Fundamentalismo Cristão (criacionismo)

Andamos tão preocupados com os fundamentalismos islâmicos que mal nos apercebemos da víbora que cresce nas nossas entranhas sociais.

Começou a germinar-me esta inquietação, na semana passada, quando li na imprensa que, algures no país, iria inaugurar-se um museu criacionista!

Perguntar-me-ão se não é disparatada esta inquietude, uma vez que não só convivemos com a doutrina criacionista durante séculos, como, sem dúvida, foi ela a base e o sustentáculo da nossa civilização. Antes de avançar em mais alargadas explicações, convém ao escrevente esclarecer o que vem a ser isto do criacionismo. Atenho-me, na explicação, apenas à actualidade.

Pois então, os criacionistas defendem que as explicações dadas pelas ciências sobre origem e evolução do universo e da vida são todas falsas, excepto se estiverem avalizadas pela palavra bíblica. Aprofundando um pouco mais: a teoria do Big Bang é errónea, a terra tem apenas cerca de 4.000 anos, o mundo foi criado em seis dias (os registos fósseis devem ter sido um divertimento de Deus para enganar os homens, porque, criados nos mesmo seis dias, revelam à análise alguns milhões de anos de existência), etc., etc.

Como tais afirmações são difíceis de manter perante um público instruído, guardam estas asserções para uma população menos letrada ou já em adiantado estado de conversão. Para os mais críticos ou mais difíceis de convencer, instituíram uma linguagem pseudocientífica apoiada numa teoria designada por “Desenho Inteligente”.

Esta teoria baseia-se no princípio da “Complexidade Irredutível”, isto é, na existência de organismos biológicos complexos que não podendo, na perspectiva criacionista, ser explicados pela teoria da evolução e da selecção natural, exigem, para a sua concepção, um projecto e um ser criador. Não sendo este o espaço nem o momento para maiores explicações direi, no entanto, que os exemplos de complexidade irredutível, apontados pelos criacionistas, estão cabalmente refutados pela esmagadora maioria da comunidade científica mundial.

Onde está então o perigo que estas crenças apresentam?

Enquanto a abordagem científica assenta na investigação, racionalidade, aumento de conhecimentos, confronto de hipóteses, construção de teorias e possibilidade da sua refutação quando novas descobertas aconselham a mudança ou abandono das teorias dominantes, a abordagem criacionista funciona num discurso circular e fechado que somente pretende reafirmar as crenças a que já se aderiu. Qualquer coisa que saia do instituído pelas fontes sagradas é inaceitável heresia que deve ser exterminada. É portanto uma posição que leva aos obscurantismos, ao fechamento ao progresso e à autoridade natural de um ou mais esclarecidos, por sopro divino, sobre todos os outros. È uma atitude cientificamente fechada, obstrucionista e socialmente autoritária.

São disto exemplo vários casos acontecidos, sobretudo, em escolas dos Estados Unidos da América ( ex: Arkansas, 1968), cujos Conselhos Directivos foram sendo gradualmente dominados por criacionistas. Nessas escolas foram imediatamente proibidos os manuais de biologia que se referiam ao Evolucionismo (teoria científica) e foram adoptadas à letra as descrições metafóricas e metafísicas da Bíblia, como se de boa ciência se tratasse. Estas posições foram sendo tomadas, com grandes tensões sociais e prejuízo de conhecimentos, até que o Supremo Tribunal dos EUA se pronunciou determinando a ilegalidade de tais atitudes e a impossibilidade de considerar no mesmo nível crenças e ciências.

Daqui a minha inquietação.

Eles vêm aí de mansinho. Aqui um museu, além uma ajuda económica atempada a comunidades carenciadas e por detrás a manipulação do pensamento através do aproveitamento de fragilidade sociais ganhando insidiosamente posições que, no seu limite, conduzirão a uma nova e obscura idade média, ao fechamento da investigação e do progresso, à fusão dos poderes executivo, legislativo e judicial num único poder religioso e totalitário reagindo violentamente a qualquer tentativa de inconformidade ao modelo único.

Tenho, apesar de tudo, esperanças que ao dominarem as sociedades, mesmo não aceitando a evolução, por necessidades pragmáticas, adoptem métodos de eliminação dos inconformados mais eficientes que o das clássicas lapidações ou fogueiras.

Publicado in “Rostos on line”http://rostos.pt

dezembro 09, 2006

O Vítor

Numa tarde de sábado, acerca de dois meses, quando, no estacionamento de um supermercado, acabava de arrumar as compras na mala do carro, fui surpreendido pela manobra de um condutor que travou no lugar ao lado de forma admiravelmente rápida, hábil e sonora.

O desembaraçado chegante desceu o vidro da janela e com o sorriso luminoso e aberto de quem encontra algo desejado, Há muito perdido, disse:

- Olá! Eu sou o Vítor!

Com certeza espantou-se -me na face a admiração porque logo de imediato acrescentou:

- Não te lembras de mim?

Confesso que não reconhecia aquela cara de lado nenhum. No entanto dava tratos à memória para me recordar de algum encontro onde tivesse conhecido aquela pessoa franca e contente que começava a ensombrar-se pelo meu esquecimento.

Vá lá, recorda-te, o Vítor, lembras-te? Então, o Vítor…

Eu não me lembrava coisíssima nenhuma do Vítor e já começava a sentir-me meio culpado. Tartamudeando foi-lhe dizendo que lamentava mas não me conseguia recordar.

- Não te recordas? Mas nós trabalhávamos juntos… e deu-me alguns detalhes que me pareceram condizer com um local onde de facto trabalhara.

- Será de Empresa X? Perguntei, meio aliviado.


- Precisamente…

- De qualquer forma não me lembro.. e fui-me lentamente recordando de um Vítor que tinha trabalhado comigo e que deixara o emprego para terminar a o curso de direito. Perguntei-lhe se era esse Vítor e logo o sorriso reacendeu e aquiesceu entusiasmado.

- Sabia que te havias de lembrar… E continuou desfolhando algumas recordações, em que não me revia, mas que poderiam bem ter acontecido, atribuindo eu à minha má memória o olvido de tais factos.

Eis senão quando me diz ter trocado a licenciatura em direito por um lugar de Comissário de Bordo na TAP e, num gesto largo e generoso põe-me nas mãos um estojo de reputada marca com um relógio para senhora e outro para homem.

Fiquei atrapalhadíssimo. Que não podia aceitar os relógios. Ele, a por o ar de quem recebe grave afronta, reiterando o prazer de me encontrar ao fim de tantos anos para eu estragar tudo recusando a sua oferta.

Contra o seu semblante contrariado consegui por fim entregar-lhe os relógios e já me preparava para entrar no carro quando subitamente, puxando de uma máquina de filmar digital ele disse:

- Olha, para comemorar o nosso encontro é tua por 300 euros…

Olhei para ele e para a máquina. Era da plástico, a lente deveria ser um vidro grosso, made in China ou Taiwan, e aquele Vítor nunca seria o Vítor que eu levemente conheci.

- Não quero máquina nenhuma e você não me conhece de lado nenhum…

- 150 Euros, respondeu-me.

- Desapareça!

- 50 Euros…

Saquei do telemóvel e informei-o de que iria ligar à polícia e lhes daria a matrícula do carro.

Num ápice, com a mesma maestria com que estacionara, fez uma rapidíssima marcha atrás e saiu, em velocidade constantemente acelerada, do parque.

Entrei no carro e fui-me a pensar na lata do tipo e na habilidade com que fora sacando informações para me baralhar na conversa e chegar a fazer-me desejar recordar os factos de reconhecimento que ia inventando.

Ontem, a caminho de Sintra, parei na estação de serviço da Ponte Vasco da Gama. Tinha acabado de atravessar o caminho quando, atrás de mim, dois leves toques de buzina, me chamaram.

Um homem de quarenta anos, bigode bem aparado, um sorriso grande como um largo, descia o vidro do carro e com enorme contentamento dizia:

- Então, não te lembras de mim? Eu sou o Vítor!

Voltei-lhe as costas e fui tomar o pequeno-almoço.

abril 20, 2006

ocidente

a ocidente

é meu país um movimento
é meu país coisa ficada

no entanto
em ruas dormirei de sono feito
e acordarei

no dia em que país crescendo
for interior de homens encontrados
não país quieto no movimento

onde me quedo sentado

In Silêncio Mordido, Plexo,1974

Foto: Pedro Correia Posted by Picasa

abril 18, 2006

o desporto não se mistura com política

na praça do desporto damos as mãos
ao pepe das bancadas e o coração também
o voto não

no terreno santo da concórdia
abrimos o grito em sã competição
a voz enrouquece
mas é pela nação

sem problemas de cor credo ou raça
eliminamos os dissídios de classe
e lutamos armas iguais pela vitória
- exeptuamos berlim que aí
hitler volta as costas à história -

na praça do desporto damos as mãos
na concentração de massas unicéfalas
alpinista do peão emigrantes da glória
matamos o árbitro e nesse movimento
esmagamos quem oprime - claro em pensamento

que tudo na praça do desporto tem seu preço
- como na da canção -
se um ganha outro perde nesta confrontação
cada campo é de desporto e de concentração


In silêncio mordido, Plexo, 1974

Foto : Forte de Peniche - Pedro Correia






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abril 14, 2006

poema para charly

o poeta social o poeta do amor geral
tinha ossos na alma mão acilosadas

é preciso que se ame enquanto a recordação dura
e nada é frio nada são olhos de morte mãos no cérebro

à porta da decepção os átomos de carbono
acenavam lenços de assoar

e as casas grandes esmagavam o jardim


é o tempo
que chega o tempo de não chegar as televisões
gritam bombas conquista diária da morte

é preciso charly é preciso que se ame com raiva
e átomos fissionados até um inexistente
deus voltar a cara ao polígono dos dedos
em orações de corpos de mulheres ao nosso

baloiçam as pernas nas caudas dos cometas
seca a areia come-se espaços de sermos pouco

basta do tempo do nada que chega


In silêncio mordido, Plexo, 1974 Posted by Picasa
Foto: Pedro Correia

abril 12, 2006

cupelon



sobre a guiné havia brumas
de histórias sem regresso

na noite
em calmosas mentiras
dormiam pântanos incêndios
e dois homens mortos
em casa do grotesco

bissau quase um pouco de nada
um corpo mulato a vários níveis de crédito
convidado para o grande reveillon do fim da vida

hospital militar 241 nos braços dos helicópteros
ou a surpresa de morrer em cada manhã

um batido de política e desportos
na arquitectura de um sorriso e perfume
para depois das cinco e meia com revistas
e pin-ups e frases que colo no cérebro

máquinas de fazer milagres precisam-se
ou a cristina vai ficar se namorado

in silencio mordido, Plexo, 1974 Posted by Picasa

abril 04, 2006

Não te esquecerei nunca

Cumprir-se-ão 32 anos, no próximo dia 25 de Abril, que no meio dos acontecimentos que revolucionaram o País, saiu, discreto, para a luz do dia um pequeno livro de poesia com o nome de Silêncio Mordido.

Foi o meu primeiro livro editado e, no dia da sua saída, ficou por completo abandonado, mesmo por mim, porque aquilo que este livro denunciava e atacava, acabara de ruir sem honra nem glória.

Com o avassalar de acontecimentos quer o lançamento, quer a distribuição do livrinho ficaram muito comprometidos e se despercebido nasceu, despercebido continuou até que um dia, passados muitos anos, um amigo me disse, meio envergonhado, que numa banca de alfarrabista, no Parque Mayer, estavam, a preços da chuva, alguns quilos do meu Silêncio Mordido.

Corri ao alfarrabista e por tuta-e-meia comprei as centenas de exemplares à venda.

E aí lhe fiz correr o destino entregando-o a leitores seleccionados, que sabiam muito sobre as suas circunstâncias.

Explico.

O livro trás a seguinte dedicatória:

“À memória de MANUEL JOÃO

Alentejano. Mineiro em S. Domingos ceifeiro em Baleizão. No dia 7 de Abril morreu. Na linha de Cascais, sob um comboio. NÃO FALOU. “

O Manuel João tinha mais de cinquenta anos nessa altura e estava quebrado pela dureza da vida e pela prisão política. Tinha os cabelos fartos e brancos e uma voz de quem pede desculpa. No entanto espantava tanto por tantas coisas que um dia, um administrador da empresa onde ambos trabalhávamos comentava comigo em jeito de admiração: Sabe que o Manuel João lê o Alves Redol??!! Um contínuo a ler…!!!

Sabia e sabia muito mais. Que dava apoio e guarida em casa a gente perseguida pela PIDE e que, na Sexta-Feira ante da sua morte, ao findar do dia, me revelou uma sua grande preocupação. Tinha sido levado uns dias antes à PIDE. Tinham-no interrogado brevemente e, coisa admirável, deixaram-no sair sem muitos problemas. Do seu saber arcano isto tinha-o feito desconfiar muito e percebeu que continuava a ser seguido. A preocupação que me confiou foi: - Estou velho, tenho medo de já não aguentar o interrogatório e de vir a dizer coisas que não devo.

Confortei-o conforme me foi possível mas com pouco êxito. O Manuel João lá se foi a caminho de casa e do fim-de-semana.

Nunca mais o vi.

Disse-me posteriormente o irmão que pela manhã desse sábado, na estação ferroviária de S. Domingos de Rana, esperava o comboio, perto da mulher, quando se apercebeu que a PIDE o ia prender.

Beijou-a e disse-lhe qualquer coisa como isto – Eu não falo. Adeus!

Atirou-se para baixo da composição, que passava no momento, mordendo, para sempre, os seus segredos.

março 25, 2006

A Propósito da Fralda do Pai

Faiza Hayat escreve, na Revista Xis, de 25 de Março de 2006, uma crónica sobre o abandono da velhice. Diz em destaque, certamente da responsabilidade da Redacção “Choca-me o desprezo e o desrespeito e a ignomínia de quem assim trata os seus mais velhos”.

Á primeira vista qualquer ser humano, com um mínimo de sensibilidade, estará inteiramente de acordo com esta indignação. Então, porque é que eu, que me confesso leitor assíduo e concordante da autora, me sinto compelido a vir a pública controvérsia sobre este assunto?

É simples.

Poderemos considerar que a crónica está dividida em três partes. Na primeira versa-se o discurso oficial – e o seu eco nos média – apoiado em dados colhidos nos hospitais e em opiniões de técnicos de saúde; na segunda, em jeito crítico, apontam-se hipotéticas justificações dadas pelos familiares para não suportarem os fardos dos seus velhos e, finalmente, a autora interroga-se sobre o seu previsível comportamento em circunstâncias semelhantes.

Quanto ao discurso oficial e à sua intenção de por em andamento “um plano de assistência a idosos” só não me faz gargalhar porquanto a situação vivida pelos idosos e suas famílias é, em si, excessivamente trágica. Primeiro porque os idosos já foram jovens, já deram o seu contributo para a manutenção e evolução social e o Governo, ao estabelecer protecções para estes, ainda e sempre cidadãos, mais não fará que cumprir as obrigações que lhe cabe. Depois, olhando as variadas demagogias tecidas por outras falecidas governações e vendo a realidade do quotidiano, “entra em mim fica em mim presa” uma imensa revolta por tanta hipocrisia e menosprezo pela inteligência de cada um.

Mas disto não tem Faiza culpa nenhuma!

Onde eu penso que reside a sua culpa, embora minorada pela angustiada dúvida, é na presumível aceitação do discurso médico. Sei que é verdade que muitos idosos são abandonados nos hospitais. Sei também que é parte fácil a culpabilização das famílias e que, tantas e tantas vezes, familiares que vão até à exaustão no apoio aos seus maiores, ao tentarem obter um internamento por mais nada poder ser feito a nível familiar, deparam com o discursos culpabilizador por parte de quem muito bem sabe estar perante a solução óbvia mas que, por motivos institucionais ou económicos, não está ou não pode acolher a legítima pretensão dos familiares do idoso.

É mais fácil negar o auxílio culpabilizando o outro.

Que esta generalização me seja desculpada pelos muitos médicos e enfermeiros que lutam, todos os dias, contra a desumanização do sistema. Mas que a culpa não seja também generalizada sobre as impotentes famílias.

A mudança dos tempos alterou, como toda a gente sabe ou sente, o conceito de família, a sua organização, logo a sua capacidade de auxílio. Hoje os filhos moram, quantas vezes, em locais diferentes dos pais e distanciados por quilómetros; habitam casas reduzidas – sim isto pode ser um verdadeiro obstáculo – e têm empregos exigentes, a horas diárias de viagem da residência, que, sob pena de sérias dificuldades económicas não podem perder. Acresce ainda que na legislação nacional nada há que proteja, ou sequer permita justificar faltas de quem tenha que dar apoio a idosos. Então, porque é que os governos não legislam nesse sentido e protegem eficazmente quem quiser dedicar-se a cuidar dos seus ascendentes? Ou porque é que sendo o problema tão antigo e premente só agora, depois de terem destruído as possibilidades familiares e as instituições que as substituíam vêm, como se coisa nova fosse, falar em apoios de retaguarda a idosos?

Muita água vai correr debaixo das pontes até que tal se venha a verificar.

Entretanto todos nós vamos envelhecendo nesta sociedade de desemprego para os nossos filhos, pensando como será connosco e sabendo que eles, por mais angustiados que possam ficar, não terão qualquer possibilidade de resolver os problemas que a idade, a doença e a invalidez nos vão colocar.

Sendo as nossas famílias, cada vez mais, compostas por dois pais e um filho, que um qualquer deus nos valha já que o filho terá certamente muitas dificuldades para nos mudar as fraldas e as instituições continuarão firmemente a olhar para o lado e a produzir, apenas, abundantes e inúteis prédicas moralizantes.

março 17, 2006

A sexta-feira do Comando (Conto)

Pousado o copo sobre o rebordo da lareira olhou o seu interlocutor e sorriu.

A terra, disse, cheira a almíscar, a cio de feras. Para quem chega há um odor agoniativo a bicho, estranho, feito de pó e coisas rastejantes. Situe-se lá o meu amigo, no início dos anos cinquenta, numa aldeia plantada como chaga violenta no espesso verde da mata.

Aí, entre o calor húmido e a secura da terra, pouco entrou ainda dos hábitos vindos de longe. Vive-se de harmonia com velhos costumes. Nem sempre os melhores, reconheço, mas com a leveza que advém de cada um saber o que se espera dele e de conhecer de antemão que ninguém lhe pedirá nada que transcenda essas expectativas. A ansiedade é coisa que por lá apenas tem guarida nas emoções pessoais. Nada com o carácter colectivo que torna totalmente insuportável a vida nestas cidades paranóicas.

Vivia-se uma vida de parcas exigências. Cultivava-se o chão na medida das necessidades; possuíam-se algumas vacas, meio selvagens e que pouco medravam, mais para prestígio e troca que para abate sistemático; meia-dúzia de galinhas entremeadas com um par de cabritos e eis todo o horizonte de ambição material.

Ao contrário do que possa imaginar a vida comunitária era de enorme diversidade. As colheitas, os choros pelos funerais, as festas da puberdade... um sem número de rituais marcava a passagem dos tempos e incutia nas pessoas o compromisso entre o datado e o imprevisto que erradicava a neurastenia e permitia a cada qual ser o animal saudável capaz de, mesmo em terrenos adversos, levar a palma a todos os mamíferos produzidos por esta inventiva natureza.

Pois, por essa época, na aldeia que tão parcamente retratei, nasceu um garoto a quem foi posto o nome de Samba Badji e que virá a ser não sei se o herói, se o malandro desta história.

Espero que as minhas palavras não lhe tenham deixado ficar a impressão de que naquela aldeia se vivia em perfeito ambiente de felicidade e igualdade. Longe disso, que o homem é ser de pôr diferenças e hierarquias por tudo quanto é sítio. Da bondade desta condição falaremos noutra ocasião. Para o momento, o importante é saber que ao nascer já Samba Badji tinha endereço. Quero eu dizer, trazia um destino senão infalível, pelo menos portador de um elevado grau de probabilidades.

Da sua linhagem provinham todos quantos por função possuíam o estatuto de receber, guardar e retransmitir as memórias daquele povo. A ignorância da escrita e o desejo de preservar hábitos e tradições obrigavam, neste caso, a que Samba Badji viesse para ser a memória viva das suas gentes.

Como o meu amigo bem sabe é questão assente, quer nos homens enquanto indivíduos, quer nos povos, deixarem de si recados aos que virão. A espécie tem um vigor de que por vezes mal se suspeita. Apesar de todas as vicissitudes por que passa, sempre lhe sobra tempo e força para deixar testemunho das suas obras. Embora ingénuo, este esforço contra o apagar do tempo, não deixa de comover pelo empenho num futuro sempre incognoscível e numa transmissão que ninguém sabe como virá a ser aceite.

Pois, como já lhe disse, por uma questão de linhagem estava Samba Badji destinado a estas funções entre o seu povo. No entanto esta não era uma batalha ganha de antemão. Repare! Dada a importância de que esta condição se revestia, eram bastantes os candidatos possíveis. Ao escolhido, depois de longos anos de treino, seriam confiadas todas as narrativas profanas e sagradas da tribo. Todas as linhagens lhe seriam transmitidas; igualmente lhe pertenceriam os feitos e os feitiços. Com tudo isso seria alto o seu estatuto e grande a possibilidade de imprimir às coisas a sua marca pessoal. Poderia inclusive enriquecer narrativas e mesmo recriar factos passados.

Uma função desta importância exigia do seu detentor, além de uma memória privilegiada e bem treinada, um porte físico digno e a inexistência de qualquer aleijão. Por isso, quando na casa de brinca Samba Badji e outros designados se absorviam nas aventuras dos seus imaginários, alguém os observava com atenção, na perspectiva de descobrir os mais aptos para o exercício de tão alto ministério social.


Assim foi crescendo Samba Badji no seu mundo, no seu destino, do qual mansamente se ia apercebendo, aprendendo histórias, contando feitos, enfeitando casos, digerindo feitiços. O mundo que habitava era, na maior parte, o mundo dos avós, feito e refeito por inúmeros outros contadores de histórias.

Um dia teve, subitamente, conhecimento do branco. Já ouvira falar. Vinha de vez em quando. Aparecia vindo do interior do mato trazendo estranhos artefactos. Coisas que no seu povo não havia e de tão estranhas associava à magia. Raiava então pelo seu décimo ano de vida. Num crepúsculo, quando o povo descansava do trabalho do dia debaixo do grande mangueiro plantado no centro da
aldeia, um ruído contínuo de trovão perturbou a paz do entardecer espantando as galinhas que depenicavam entre as casas. Assustou-se de verdade quando atrás do ruído viu entrar na povoação, deitando fumo e numa tremenda barulheira, uma coisa grande, verde, só aberta à frente e com um homem, branco, dentro. Essa aparição estacou junto ao mangueiro numa loucura de pó e Samba só não fugiu por ver como os adultos sorriam e por pensar que aquela era uma das máquinas de levar gente de que o mestre lhe falara.

Da furgoneta saiu o homem. Era muito velho e pequenino. Cumprimentou à volta. O régulo saiu-lhe ao caminho e depois de se abraçarem levou-o para a grande construção de barro e colmo onde habitava.

Mais tarde, quando já a noite era completa, começou uma magia que projectava, num pano estendido entre árvores, brancos grandes que falavam, batiam e se matavam de muito longe com coisas pequeninas e de voz grossa que nem sequer pareciam armas.

Desta forma tomou Samba Badji conhecimento, de uma só vez, com o branco, o automóvel, o cinema e o western.

Ia já nas suas quinze ou dezasseis chuvas quando o seu destino foi cortado cerce pelo infortúnio. Aconteceu apenas que na virilha direita de Samba Badji se começou a formar um edema e a enrugar a pele. Para os mais velhos estes sintomas foram, desde início, esclarecedores. Para ele estiveram muito tempo no reino do inacreditável, do não possível em mim. Tão impossível de acreditar que, se não fosse o respeito devido ao homem grande que o ensinava, ousaria contestar com um sorriso de incredulidade.

O aleijão que se iniciava no corpo de Samba era porém definitivo e irreversível quer para ele, quer para o seu estatuto. O meu caro amigo já ouviu falar em elefantíase? É uma doença provocada por uma filária e infelizmente muito comum. Se bem que de fácil tratamento em qualquer país ocidental, era sem esperança para o pobre africano. Essa imparável doença iria fazer inchar-lhe enormemente o membro afectado e enrugar-lhe-ia a pele de tal forma que a sua perna pareceria a de um elefante. Assim, por defeito físico e previsão de vida curta deixou de ser confiada a Samba Badji a missão que lhe coubera e aceitara de ser a memória viva sua tribo.

No dia em que, já com a perna num trambolho, foi decidida e claramente afastado desse afazer, pela nomeação de um substituto, Samba Badji abandonou a aldeia.

Sem dizer nada a ninguém, aproveitando boleia num carro da tropa, que em trabalho de "psico" passara perto do lugarejo, partiu para Bissau, onde, ouvira dizer, os brancos podiam curar a sua doença.

Em duas ou três estiradas chegou a Bissau. Difícil seria fazer sentir-lhe a angústia desse pequeno ser desventurado, habituado à placidez da tabanca, mergulhado entre tantos rostos tão diferentes como indiferentes. Nos primeiros dias ainda tentava, numa sensação mista de espanto e absurdo, encontrar uma cara conhecida por aquelas ruas. Mas qual! Tudo quanto lhe parecia conhecimento era apenas mais um engano. Mais um desejo de não se sentir sozinho.

Bissau regorgitava de movimento e fardas. Nunca pensara que pudessem existir tantos carros e tantos soldados. Na sua aldeia, por vezes, falava-se, com voz dissimulada, de uma guerra que estava a acontecer. Por vezes mesmo, os soldados passavam pela sua aldeia e distribuíam comprimidos como se fossem guloseimas e aplicavam, nos rígidos peitos das "bajudas", fricções "Vic". Mas eram sempre grupos pequenos e divertidos que davam boleias e falavam, por meio de intérpretes de coisas engraçadas como colaboração, camaradagem e a necessidade de denunciar à tropa amiga as actividades dos bandidos armados que vinham do exterior para perturbar a paz de toda a gente.

Conseguiu uma consulta no Hospital Civil. Indicaram-lhe que o melhor era o Militar e ele tentara a sua sorte. Foi corrido com rapidez. O Hospital era mesmo só para militares e estava a abarrotar. A todo o momento chegavam helicópteros com feridos para tratamento urgente. As camas escasseavam e os médicos eram poucos para acorrer às desgraças que lamentosas ou gritantes, do céu, desabavam em contínuo sobre o Hospital.

O tratamento a que foi submetido revelou-se inconsequente. A tristeza ia aumentando ao ritmo de progresso da disformidade na perna. Acrescia a isto um outro problema. Como poderia sobreviver naquela cidade enorme e sem abrigo?

Talvez o amigo se sorria ao ouvir classificar como grande uma cidade como Bissau. Na verdade todas as coisas são aferidas através das nossas dimensões e referências. Ponha-se no lugar do Samba. Com esse novo olhar descobrirá realidades insuspeitadas nessa terra que o senhor tão bem pensa conhecer. Tente e verá. Conseguirá a visão de um outro local e de um outro modo de ser tempo e presença. Descobrirá também um outro lugar de coragem que é o ser a quem chamamos Samba. Repare... aos quinze anos, subitamente roubado de futuro, sozinho numa terra desconhecida procurando uma manhã diferente em que lhe devolvam o que lhes estão a roubar de vida. É grande carga para ainda tão frágeis ombros.


Mas o que agora interessa é saber como conseguiu sobreviver nessa terra de brancos, onde aos naturais, apenas se reserva um lugar na soleira da porta. Pois foi aí que ele fez a sua grande tentativa de sobrevivência. Recorda-se, por certo, que nas casas comerciais era costume, quando ao crepúsculo encerravam, uns nativos estenderem, na platibanda das casas, as esteiras e o cobertor. Depois, instalados, fumavam um cigarro e, passando pelas brasas, faziam desse dormir sobressaltado uma função. Pois sim senhor, eram mesmo eles, os guardas. Uma espécie de superstição do comerciante. Com essa presença sonolenta e alheada pensavam poder exorcizar o roubo e informar, ao mesmo tempo a quem estivesse interessado, que eram seres bondosos e compassivos para com os pobres nativos. Comerciante é mesmo assim. Procura, de formas várias e sobretudo, acautelar os seus haveres. Além do mais, era trabalho barato. Uns cigarros e uma refeição ficavam o trabalho pago e a fazenda assegurada.

Este foi o labor a que se propôs Samba Badji. Mas a sua pouca idade e a por demais visível deformidade afastavam o mínimo de seriedade que, de qualquer modo, convinha atribuir à função. Repare que quanto menos se acredita numa coisa, tanto mais se torna conveniente a preservação dos rituais externos. Por tal conveniência ficou, Samba Badji, impossibilitado de conseguir a sua manutenção.

A segunda tentativa não teve também maior êxito. Foi pedir para as portas dos cafés, dos restaurantes e junto do mercado. Aí a concorrência era enorme. Tinha que competir com outros mais preparados. Qualquer puto com oito anos de idade, além de mendigar, oferecia-se, para a prática de actos sexuais diversos, aos senhores da guerra. Não faça esse ar de espanto. É o mesmo que
faziam as autoridades quando alguém, por moral ou vergonha, apresentava queixa. De facto nem valia a pena. Muitas vezes eram essas mesmas autoridades que beneficiavam de tais práticas. Assim, Samba roçou a indignidade. Descobriu que as meninas eram prostituídas ao preço da chuva e que vinte e cinco tostões chegavam para uma relação com um garoto. Cinco tostões menos que o preço da bica.

Não conseguindo por essa via a sobrevivência, passou alguns dias a vasculhar caixotes de lixo. Não iria muito longe se um dia não fosse visto por uma mulher que todos conheciam por Maria e a quem acrescentavam, por causa do tom da pele, de Cabo Verde. Embora nascida e criada em Bissau, fruto do um encontro de um branco com a sua lavadeira, deixava que pensassem que era caboverdeana. Era bom para o negócio. De prostituição, como não podia deixar de ser. Filha de lavadeira, lavadeira será. No entanto, alguma coisa aprendera e nunca engravidara... Não queria filha sua nesta vida. Talvez, por isso, ao avistar Samba Badji a vasculhar no lixo se apiedou e o levou a sua casa. Matou-lhe a fome e ouviu-lhe a história.

A profissão foi também ela que nesse dia lha definiu. Um antigo cliente, morto numa rixa de vinho, deixara em sua casa uma caixa de engraxar. Tudo completo e em bom estado. Maria ofereceu-a a Samba.

- Pode vocês ficarre com ela. A mim não serve.

Por isso, agarrando a caixa que lhe assegurava o dia seguinte, todas as noites, por gratidão, Samba pegava na sua esteira e manta e, por baixo da alpendurada da casa de Maria velava as horas em que os outros dormiam e ela recebia os homens, cumprindo o seu ofício.

Naquele lugar, por entre gemidos e arfares, no decorrer das conversas que lhe chegavam através das tábuas do chão, Samba fez a sua aprendizagem e começou a amar Maria que, dizia-se, era de Cabo Verde e nunca saíra de Bissau.

Tornado habitual em seu poiso pouco demorou a arranjar amigos. Foi primeiro, entre os chegados e nos afectos António. Negro retinto, baixo e sempre descalço, ostentava com orgulho um rádio de pilhas onde, indistintamente, ouvia todos os programas em crioulo, fossem eles transmitido pela rádio oficial de Bissau ou pelas emissoras afectas ao PAIGC.

Por vezes, quando no cerrado da noite ouviam as vozes das notícias, que vinham instalar na realidade uma estranheza que não se percebia bem como chegava e criava um agradável desconforto no coração, sussurrava a voz de Gazela recomendando maior discrição:

- Vê lá minino, se o tropa ouve tu está mal.

- Está mal porquê ? - Perguntava, ainda ingénuo, Samba.

- Pois tu não vê que o tropa está em guerra com a gente.

- Com a gente não. Eu não estou em guerra com ninguém, Gazela.

- Pois é minimo, a gente não escolhe a guerra. Ela é que escolhe a gente e vem buscar a casa. Tu não ouviu falar de rusga, de operação?

- Já ouviu, sim. Todo dia quando limpa bota de militar ele fala isso. Fala de ronco e de combate. Mas isso é só com bandido da mata.

- Beh!! E gente da mata quem é? É gente com pele suma nossa.

- E tropa? Não tem gente, também, suma nós?

- Tem, sim, tem. Tem gente que ajuda o tuga a matar nossa gente. Isso que tem. E que é criado de branco mais ainda que nós.

- Mas Gazela, militar, mesmo preto, tem comida todos dias...

Então, muito em surdina, sintonizando o rádio para a emissora de Bissau, Gazela contava a Samba e António como era aquela guerra. Contava-lhe como os guerrilheiros capturados eram torturados até à morte para revelarem os locais dos acampamentos, os nomes dos chefes ou dos correios. Como, na lonjura das noites, mata fora, cosidos no negrume e ansiedade, os guerrilheiros esperavam o momento de lançarem a emboscada ou o assalto. Dizia-lhe da confusão e dos riscos dos fogos que traçavam a noite. Dos gritos dos que morriam ou eram feridos, das levas de prisioneiros que desapareciam nas matas ou na Ilha das Galinhas. Sonhava com o dia em que Bissau fosse toda ela do povo que lhe vivia a periferia e só no trabalho e na humilhação lhe franqueava o centro.

Objectava Samba que não era assim. Ele, todos os dias andava por Bissau e por todos os lados. Quando o dia lhe corria melhor e sobrava dinheiro podia passar a noite a ver cinema, no Cine Udib, a recordar não sabia se o milagre que um dia, parecido agora tão distante, vira na sua tabanca, se a sua tabanca mesmo, pensamento que lhe doía e nunca o deixava por completo.

- Pois vai no Cine Udib e fica cá em baixo na plateia, não é? Vai na cidade e no café e engraxa sapato. Vai no restaurante e faz recado...

- Pois é assim, é. Mas se tivesse manga de patacon podia fazer esses coisa todos...

- Podia se tivesse dinheiro. Mas não tem. Nem tu, nem eu, nem António. O que a gente tem é fome e trapos.

E era assim mesmo. Gazela era alto e seco, de braços encordoados. Morava no Cupelon - Pilão, no dizer dos soldados - o maior bairro nativo onde, pela noite, só os mais afoitos se aventuravam. Não tanto pelo que lá tivesse alguma vez acontecido, mas pelo receio do que supunham poder acontecer. A lógica deste posicionamento era simples. Se durante o dia e na nossa zona dominamos impiedosamente, que farão eles na noite e na sua zona se lá nos apanharem. Lógica de dominadores inseguros...

Gazela era estivador. Quando havia barco a descarregar era levado, logo pela manhã, do cais, num rebocador a transbordar de uma horda descalça e rota. Chegados ao navio despejavam-se pelos conveses e demandavam os porões. Cerca do meio-dia vinha da cozinha o bidão dos restos da comida, tudo amalgamado como lavadura para porcos, que deixavam na coberta. Quando passavam, os descarregadores, metiam a mão no recipiente e, de corrida, abocavam o que podiam entre mais uma braçada de corda e o acertar da carga nas barcaças.


Por isso Gazela trespassava com os olhos os soldados recém-chegados que assim o viam comer e que bem fundo guardavam essas imagens de sub-humanidade. Tornavam mais fácil pensar que matar um terrorista é matar apenas um inimigo e um inimigo assim será sempre menos que um homem. Era a sub-gente que vira a devorar os restos misturados da sua comida.

- O que a gente tem é medo da porrada - dizia Gazela. Samba e António ficavam calados ao pressentirem uma verdade que ainda não lhes era acessível.



Foi-se, deste modo, apercebendo Samba do mundo à sua volta. Ao chegar a Bissau apenas a sua angústia existia. Ao seu redor só havia um muro baço onde as pessoas e as coisas se confundiam. Pouco a pouco, as conversas, a experiência e a reflexão foram dando relevo às coisas, tornando mais claras as pessoas, mais próximas umas, mais distanciadas outras.


Descobriu o ódio quando, num café, engraxando os sapatos de um militar, viu passar num carro da tropa, fortemente escoltado, um grupo de homens. No meio deles, com a cara desfigurada e numa pasta de sangue, estava o seu amigo Gazela. Quis correr e gritar por ele mas, do cimo do carro, Gazela lançou-lhe um olhar que ele percebeu. Dizia-lhe que ficasse quieto e que o recordasse. Foi um aviso e um adeus.


Só pela noite conseguiu encontrar António. Na escuridão calada ele chegou-se aos baixos da platibanda e muito devagar, com uma centelha de receio a bulir-lhe nas falas, perguntou-lhe se já sabia da prisão de Gazela.

- Vi-o no carro da tropa...

E a cara ensanguentada e o olhar de Gazela faziam-no sentir, nem sabia porquê, mais pobre e mais doente. Nunca, como nessa noite o incomodaram os mosquitos e o calor, o inchaço da perna e o chão húmido onde se deitava. Pela primeira vez pensou que os brancos da sua idade não dormiam, envoltos numa manta mal-cheirosa, nos desvãos de uma casa. Nem sequer tinham de se preocupar com o que
iriam comer no dia seguinte. Nem que se encerrar, na solidão da noite, na angústia de se saber a enfraquecer cada vez mais depressa, no caminho certo da morte não muito distante. Tudo à sua volta lhe cheirou a podre. Tudo lhe pareceu nitidamente descolorido. Com cor, só mesmo o vermelho vivo na cara de Gazela.


Durante algumas noites calaram o rádio. António tinha medo.

- Podem saber que era amigo. Se vem a tropa prender...

Via-se já ele também preso, sem o rádio, despojado de si, humilhado por maus-tratos a desaparecer no verde de uma mata, no decorrer de qualquer operação fantasma, feita a propósito para abater o prisioneiro que tentara fugir. Por isso, não ouviam rádio.


Mas ouviam, através do sobrado da casa, as vozes dos soldados que esturdiavam em casa de Maria. Eles riam e bebiam. De vez em quando chegavam-se à balaustrada e escarravam para a noite. Para Samba era como se escarrassem sobre ele, como se escarrassem sobre a face de Gazela e a partir deste, como se escarrassem sobre um corpo difuso que ele ainda não percebia bem, mas que no fundo começava a entender como uma entidade vagamente afectiva, com um nome que se começava a perceber.


Por vezes António sublinhava os ditos dos soldados com remoques ácidos. Chegou mesmo a prometer que um desses dias passava para a mata. Teria uma arma e lutaria contra os cabrões dos tugas. Eles que fossem embora e deixassem cada um viver na sua terra à sua maneira.


Samba ouvia. Lamentava não lhe ser possível tal atitude. A doença impedia-lhe ter veleidades. De novo, perante uma possibilidade de dar um sentido à vida sentia-se a falhar e via a impotência insuperável trazida pela sua disformidade limitar-lhe todas as possibilidades de escolha. Teria de ser nada e apagar-se lentamente. Só isto lhe era permitido.


Uma noite António trouxe de novo o rádio. Fez ouvir a Samba a notícia, repetida amiúde pela rádio Bissau, de uma grande vitória das nossas forças. O locutor descrevia com minúcia as circunstâncias e os resultados de um golpe de mão que tinha surpreendido, em pleno abastecimento, uma coluna de terroristas na tabanca de Autacunda. Falava das baixas irrisórias sofridas pelas nossas tropas e contrapunha o elevado número de mortes havidas na guerrilha e entre os habitantes dessa aldeia de traidores. Deus estava, como se via, connosco..


Ao ouvir a notícia Samba Badji sentia uma irreprimível angústia assaltar-lhe a garganta. Era da sua aldeia que falavam.


Outras coisas havia que turbavam o seu coração. Maria era uma delas. Talvez mesmo a maior. Aos seus verdes anos aparecia-lhe como a imagem da perfeição. Inicialmente pensou ser o seu bem-querer consequência da gratidão. Mas o sofrimento que lhe trazia a voz dela na mistura com o gargalhar dos soldados e os desejos, quase sonhos, que acalentava, fizeram-lhe perceber a natureza do sentimento nutrido pela mulher. A sua proximidade perturbava-o demais. Já por algumas vezes, quando os dias lhe corriam de feição, pegara em cinquenta pesos para, como qualquer outro, no mal anoitecer que surpreende, entrar casa dentro e comprar o seu tempo de amor. Nunca ousara chegar mais que à porta. Mesmo uma vez em que avançando mais, sentindo passos ela veio abrir, ele respondeu apenas que lhe apetecera, nesse dia, ficar ali pelo lado de cima. Estava cansado de se enrolar no escuro.


Foi com voz cariciosa que ela lhe perguntou porque não ia viver com o António. Podiam dividir o aluguer do barraco. Era melhor para os dois. Samba não soube dizer mais que qualquer dia sim. Por dentro sentiu um frio muito grande ao pensar-se fora daquela comunhão precária, mas que o prendia à vida. Com a chegada de um soldado que se agarrou a Maria a porta fechou-se e ele voltou a instalar-se na sombra.


Dias depois António trouxe com ele um velho da aldeia de Samba. Chamava-se Sanca João e em melhor oportunidade contar-lhe-ei a sua história. Desta vez apenas lhe digo que vinha como emissário. Trazia a Samba a notícia da morte do pai no assalto que os comandos tinham feito à sua aldeia.


Samba ouviu tudo sem falar. Nada perguntou. Soube apenas que ao amanhecer a aldeia fora cercada. Procuravam um emissor de rádio que um informador dissera estar escondido na aldeia.

- Entraram os militares pelas casas destruindo e roubando. Algumas mulheres assustadas tentaram fugir. Foram fuziladas pelos que de fora, fechavam o cerco. Depois juntaram toda a gente na coberta dos ferreiros. Levaram os mais velhos para interrogar. Não havia rádio nenhum e ninguém poderia dizer, assim, onde ele estava. Então foram buscar as mulheres e os filhos dos homens grandes e em pequenos grupos foram-nos levando para o outro lado da aldeia. Passado tempo ouviram-se tiros e vieram buscar mais. Antes de cada leva perguntavam aos velhos onde estava o rádio e os bandidos. Ninguém sabia. Ninguém respondia. Ouviam-se a seguir mais tiros. As mulheres choravam agarradas aos filhos. Foi quando o teu pai disse à tropa que ali não havia mais nada que trabalho e que se quisessem que os matassem a eles e deixassem as mulheres e as crianças.


- Bem lembrado, - disse o capitão.


- Agarraram no teu pai e mandaram-no, em frente de toda a aldeia, cavar a sua cova. Quando o trabalho terminou o capitão perguntou-lhe:

- Pela última vez, onde está a porra do rádio, onde é a base e quem estabelece os contactos?


- O teu pai continuava calado...

- Tratem do gajo - .


- Primeiro espetaram-lhe lascas de madeira sob as unhas. A seguir, sobre o peito, despejaram pólvora dos cartuchos das balas e puxaram-lhe fogo. Como ele nada dissesse encharcaram um pedaço de desperdício em gasolina e queimaram-lhe todo o corpo. Quando lhe deram o tiro final já não o deve ter sentido. Finalmente puxaram fogo à mata e à tabanca e lançaram granadas sobre todos nós. Nem sei quantos morreram.



Samba continuava a ouvir as palavras sem nada perguntar. Dentro um vulcão acumulava forças. Cresce-se sempre dolorosamente. Dos seus olhos vermelhos e secos nada parecido com lágrimas se soltou. Só o continuado frio de não perceber qual o sentido das coisas lhe veio habitar a noite que o envolvia. Maria, por entre o tabuado tinha ouvido o recado que Sanca trouxera, saiu às escadas e sentada junto a Samba chorou por ele as lágrimas das suas condições. Muito lentamente foi-lhe acariciando a cabeça e diminuindo, entre eles, a distância inexistente. Foi, com esses gestos, traçando um risco luminoso no grande escuro onde Samba estava envolvido. Nessa noite, pela primeira vez, dormiu dentro de casa e na cama de Maria.


Noites passadas chegou um dos clientes certos. Era o Cabo Xico. Talvez este fosse o seu nome verdadeiro, ou talvez não fosse. Na realidade isso não tinha qualquer importância. Todos se chamavam como queriam ou podiam. De qualquer modo ele chegou mais ruidoso e bebido que o costume. À entrada da rua, para se anunciar berrou:

- Maria abre-te toda e prepara a vaselina que o teu cobridor chegou.


Samba tremeu. De todos os homens que frequentavam aquela casa este era o que mais profundamente detestava. Se pudesse levaria Maria para um lugar onde vivessem sem a afronta diária de ganhar a vida a troco de cinquenta pesos, mais o custo das bebidas. Se a intrusão de qualquer homem lhe era penosa a presença do Cabo Xico era o seu maior tormento. Militar dos Comandos comportava-se sempre de modo insolente e tratava os negros como merda. Para ele todos eram turras e não tinham direito a nada além de uma bala bem metida nos cornos. Se havia guerra era porque os pretos queriam. Andavam a matar brancos e esperavam que ficássemos quietos. Ora não. O que era preciso era dar-lhe forte no focinho. Muito se admirava que alguns maricas quisessem que os tratassem como gente. Mandasse ele e resolvia o problema em duas penadas. Só não percebia como era que o Spínola, que era macho a valer, embarcava na cantiga da "psico". Boa "psico" lhes daria ele. Bala para cima até fazer faísca. Só de pensar que por essa merda o proibiram de usar o colar de orelhas dos turras abatidos dava para ficar verde.


Dizia abatidos e sentia-se impante. Primeiro porque abatidos era palavra fina que até ia nos relatórios e era assim que diziam o alferes e o capitão. Depois porque abatidos estava muito correcto. Morrer morrem os homens. Os pretos e os cães, quando muito, são é abatidos.



Samba, ao ouvi-lo, tremeu de raiva. Encolheu-se mais na manta e quando a porta bateu chorou baixinho a sua incapacidade e mais uma vez desejou a mata e invejou o destino de Gazela.


Na casa o Cabo Xico cantava. No seu tom rude ordenou que Maria lhe pusesse um uísque no copo.


- Do melhor ouviste? Hoje é um dia especial. Tira-me da frente essa morraça. Disse-te que era do melhor. Puta de merda! Quero desse que guardas para os oficiaiszecos e furriéis que te vêm lamber a cona... Hoje é dia grande. Porra! Já disse... deita desse...mas que grande traço que tu és! Vê-se mesmo que tens sangue branco. Vá senta-te aqui no meu colo. Vou contar-te um segredo. Vou ser condecorado! Ouviste? CONDECORADO.



- Porra! Vou repetir. Vê lá se percebes. VOU SER CONDECORADO. Ganhei a Cruz de Guerra. E esta, hem??!! Não esperavas por isto, pois não? Mas é verdade. Vou gramar à brava. Ver a cara dos mandões lá da terra quando aparecer com a condecoração. Sempre quero ver como passarão a tratar-me. Mas olha que não fazem favor nenhum ao darem-ma. Se tu me tivesses visto esta tarde. A malta, na parada, toda formada. Apareceu um granjolas e toca de fazer um grande elogio. Porque somos os melhores, porque a Pátria para aqui e a Nação para ali tinham os olhos postos na gente e porque confiavam em nós e mais tretas e tretas. Até que agarrou numa Ordem de Serviço e, para nós vermos como a Pátria sabia reconhecer os seus melhores filhos, iam agraciar o melhor dos melhores.


Bumba, lá veio o meu nome. Ia caindo de cu. Começou a ler um louvor que vinha do Spínola. Tudo a tratar bem o mangas. Ainda por cima vão pagar-me uma viagem de férias à terra. Nada como a guerra para apreciarem um homem com eles no sítio. Também não fazem nada de mais. Ainda não há muito tempo em Antauda...


Samba Badji ficou de pé num instante. Ele era um deles...

...se tu visses o que foi ceifar neles. Pareciam tordos. Eu sempre disse que o que eles querem é porrada...

Maria estremeceu e uma agonia muito antiga subiu-lhe à boca...

...provavelmente até matara o seu pai...

...se procedêssemos todos assim esta guerra de merda acabava que era uma lindeza...,

...e gritou-lhe bem alto a palavra que sempre temera ouvir na sua boca:-

- Assassino, sai já desta casa!

O Xico parou de surpresa. Na rua?! Ele!! Hoje! Condecorado!!

- Puta dum cabrão que te fôdo. Estás feita com eles.


Avançou para Maria agredindo-a com a selvajaria que a incompreensão manifestada pela sua grandeza justificava. Anos de luta, miséria, submissão recompensados pela medalha... e aquela puta de bairro...preta dum caralho...


Enquanto ele lhe batia e gritava, atirando-a para o escuro da rua, Samba tremia de medo e fúria.


...Vais pagá-las todas. Puxou da faca de mato e por três vezes esfaqueou Maria. O seu último som foi um estertor de sangue na garganta cortada.. A luta entre o medo e a fúria que paralisava Samba terminou nesse momento. Enraivecido correu para o local onde o Xico, estupefacto, olhava a mulher morta. Deitou-lhe as mãos à garganta e apertou com todas as suas forças. Tirado da apatia o Xico sacudiu Samba Badji e pontapeou-lhe a perna doente. Olhou em redor para ver se alguém observava e gritou:

- Seus cabrões, a quererem-me lixar a vida!


Ainda se revolvia com dores no chão quando Xico lhe mandou um pontapé na cabeça. Conseguiu, num rápido reflexo, evitar o impacto directo mas ficou completamente atordoado. Rodou o corpo para fugir a nova agressão e sentiu, por baixo de si, a faca que Xico tinha deixado cair. Agarrou-a firme e esperou novo ataque do comando. Como lhe foi possível enlaçou-se ao corpo do militar. Quando este começava a estrangulá-lo, as suas mãos conseguiram unir-se sobre as costas do adversário e com um penetrar horrivelmente fácil enterrou a faca nas costas do comando.


Todo o bairro estava silencioso e de janelas fechadas quando Samba, com a lentidão dos sonhos, se afastou do corpo que agonizava na valeta, arrastando atrás de si a perna doente e o negrume da noite.



O homem que se encontrava sentado levantou-se. Do cimo da lareira retirou um copo meio de bebida, olhou para o seu interlocutor que acabara de falar, pigarreou e disse:

- Pois doutor, como é habitual em si expôs-me esta história com brilhantismo. Tudo isso é muito bonito. Romanesco, mesmo. Não acha, porém, que cheira a lugar comum e a inverosímil? Repare, por um lado temos um comando, jovem e possante, treinado para a luta e a sobrevivência em qualquer situação; por outro, temos uma caboverdeana, que afinal nem o era, sexualmente explorada pelo branco mau e o jovem doente que miraculosamente mata um homem muito mais forte e preparado e se perde, romanticamente na noite. Desculpe-me se insisto, mas tudo isto me faz pensar na imagem gasta do ocidente forte e pujante, mas ética e historicamente condenado a ser vencido por uma África desgastada e aparentemente sem hipóteses, levantada, apesar de tudo, do chão da sua impotência em busca de uma distante alvorada.

O narrador fez uma pausa. Afastou-se um pouco da lareira onde o fogo devorava com avidez as achas de madeira, respondendo com um breve sorriso a marcar a tepidez do ambiente:

- A história que lhe contei parece, sem dúvida, pura ficção e o meu amigo fez, indubitavelmente, jus ao seu espírito cartesiano. Mas como reagiria se eu acrescentasse que, nesse tempo, me chamavam Samba Badji?

fevereiro 26, 2006

A Arte de ensinar a matar dragões

Estive para começar esta crónica usando a conhecida frase “naquele tempo”…mas tive receio que considerassem tal forma um abuso de liberdade de expressão e, tresloucados, viessem ara a rua católicos fundamentalista ou, pior que isso, alguém apresentasse queixa ao Senhor Procurador-Geral da República.

Desta maneira, autocensurei-me, usando da minha melhor dose de responsabilidade e resolvi, para evitar danos de maior, começar de uma maneira menos comprometedora. Portanto cá vai:

Era uma vez… (haverá já criancinhas furibundas na rua?) Pois então lá vai o que era dessa vez.

Na velhíssima China de há mais que muitos anos nasceu uma criança a quem deram o nome Fun Leong – o nome fui eu que o inventei e espero que não signifique qualquer coisa de ofensivo para os chineses – e que, por desgraça, nasceu oficialmente filho de pobre. Digo oficialmente porque vocês sabem como são estas coisas! A mãe era jovem e “bem-parecida” e o Mandarim da terra, por questões que não se percebem bem, mesmo antes da criança nascer, sempre teve para com aquela família abundantes desvelos. Tão grandes que se poderia dizer que foi como um pai em toda a vida do nosso Leong.

A criança, de esperta que constantemente foi, nem parecia provir de meio de tão escassos recursos. Como todos sabem e não preciso de perder tempo a explicar o que é óbvio, a inteligência das crianças, desde sempre, está na razão directa do meio em que nascem. Se disto alguém tem dúvidas consulte as estatísticas e veja, com olhos próprios, a evidência das minhas afirmações.

Para que capacidades tão raras se não perdessem o bom Mandarim tratou de ensinar e conseguir mestres que educassem o rapazinho. Que nunca desiludiu. Da prática à teoria, do desenho de caracteres à argumentação, era sempre o mais rápido e ladino. Por isso, para abreviar, o Mandarinato estava-lhe mesmo a cair na sopa. Tais provas de argúcia deu, tais aptidões demonstrou perante os examinadores que lhe foi destinado o mais difícil e prestigioso curso, a saber: A Arte de matar dragões.

Como era de prever foi o primeiro classificado da sua formatura e, com os outros companheiros, mal se viram habilitados partiram, cada qual para seu canto do vasto mundo, para meterem em prática, com a máxima coragem e eficiência, a difícil arte a que se consagraram.

Alguns anos passados voltaram estas promissoras criatura a encontrar-se para comunicar aos outros as suas fortunas. Mas - valha-me qualquer coisa que se creia como sobrenatural e que não me atrevo a nomear - dos exuberantes jovens partidos regressaram fontes encanecidas, nenhum ar da esperada opulência e nos rostos, mais que desilusões, reflectia-se o pânico da inutilidade. É que, todos eles, nem sequer com a excepção do excepcional Leong, em parte alguma do mundo, encontraram dragões em que pudessem exercer a sua arte ganhando glória e proventos.

Assim estavam as coisas: - Lamentos, tristeza infinita e o que é que vamos fazer?

Das reflexões longas que efectuaram ninguém conseguiu arranjar saída para tão crítico estado de coisas.

É natural que me perguntem: Então e o Leong, essa tão brilhante esperança, nada tinha escondido nas consabidamente longas mangas da túnica?

Claro que teria e o que eu fiz foi um pequeno truque de autor para aumentar o suspense e o tamanho do escrito (vício que me ficou de quando me pagavam artigos à linha). Portanto, no meio da depressão colectiva, elevou-se a voz do nosso herói que disse:

-Meus amigos, nada de desesperos. Somos a casta letrada e detentora de todos os conhecimentos do Império do Meio. Mal seria se para tão parco problema não houvesse nas nossas esclarecidas mentes cabal resolução.

Pasmo e bocas abertas entre os sábios em conclave… (oh! Diabo, querem ver que vou arranjar outro problema por falta de responsabilidade no uso da liberdade de expressão? Vou esperar 24 Horas para ver o que dá.) … adiante, ia nas bocas abertas e nas expressões “confucianas” daqueles reunidos (assim é mais anódino e está melhor, não está?) uma expectativa dolorosa preste a rebentar em gritaria.

Para que tal não acontecesse, o que seria basto desprestigiante par os dignos mandarins, resolveu-se, finalmente, Leong, a expor a sua ideia.

Camaradas (ai, ai, ai…) já que tanto sabemos sobre a Arte de matar dragões e também sabemos, de experiência feita, que dragões não existem o melhor que temos a fazer é mantermo-nos unidos e utilizar os nossos conhecimentos, para proveito dos outros, abrindo uma nova Escola Superior da Arte de Matar Dragões.

Reza a lenda que assim se fez e que o êxito foi tal que, de todas as partes do Império, chegavam pedidos para a abertura urgente de novos pólos de tão importantes estudos.

A história está contada e não tenho qualquer conclusão a tirar dela e se alguém, mal intencionado, encontrar qualquer semelhança entre esta lenda e o que se tem passado em algum país, que não nomeio, tal poderá, ou não, ser considerado pura coincidência.

Cada um que em sua consciência decida!

fevereiro 19, 2006

Luz (Poema)

I
Da explosão dos dias
em fulgor rubro
te falo eu
na curva verde da distância.

O tempo parou-te
no umbral.
A fenda clara
entrava mansamente
no obscuro domínio.

Serena
dormia a casa.
Só tu de olhos
claros de luz
colhias a manhã inicial.

Parada na porta.
Mãos num gesto
de abraço,
ouvindo a melodia da luz
tu bailavas ...
quieta!

Um pé teu avançou súbito
para o azul do voo.
Mas recolheste,
o movimento
ainda com o corpo quente
da matinal luminosidade.
II
Encostas a porta.
Do jardim,
chega-te o trinado dos melros.
Sentes intenso o aroma das violetas.
Por isso, fechas a porta
e devolves-te à sombra.

Por ela te moves
com a elegância
segura e sinuosa
dos cegos.

Ecoa no teu corpo
a memória do fulgor.

Pegas na rotina espalhada
pela cozinha
e vais ordenando aquele mundo:
as torradas para os miúdos,
o chocolate,
o sumo para o Zé-Tó ...
e o aroma mágico do café,
eficaz mensageiro
que envias pela casa.

Confirmas ... – as cortinas estão
corridas!
São azuis e deixam-te uma nesga de horizonte,
por onde teimosa
entra a luz melodiosa.



Saltam enérgicas as torradas!
Fazes correr a manteiga pelo dorso do pão quente!
E no centro da mesa,
ternamente dispões
a fruta vermelha .

Ao lado, no tabuleiro
as chávenas para o café.
Duas.
Brancas. Com um pássaro
azul,
em voo.

Esquecida da rua
admiras o quadro composto...
Perfeito!
Nos tons,
na harmonia entre as coisas.
Nada esquecido. Nem o pannier de linho cru.

Levantas-te precipitadamente:
as cascas de laranja
perturbam-te.
A faca tombada na bancada
como gente sem rumo
arrepia-te.

Arrumas tudo.
Estirada na cadeira
lanças um olhar pela mesa
– podia ser uma bela natureza morta! – pensas.



Depois, esperas ...
mordiscando uma torrada distraída.
O café esquecido
arrefece na chávena.

Por isso te lembro
a negada explosão dos dias
rubros,
únicos.

A luz baça
azulada
alastra-se pela cozinha
embalando-te na espera.

A quietude da casa
permanece
intacta.

É nesse instante,
que fechas os olhos,
e percorrendo sôfrega
a sombra
entregas o teu corpo
ao transe da luz amanhecida.

fevereiro 18, 2006

Tirem as mãos do teclado

O Presidente da Republica deu um prazo curto a Souto Moura para lhe apresentar justificações para as escutas – ou inserção do seu número de telefone particular em listagem inserta no processo Casa Pia – que lhe teriam sido feitas.

Souto Moura ainda não se explicou ao Presidente

A Assembleia da República, dada a delicadeza da situação, convocou o Procurador-Geral da República para num determinado dia comparecer perante a Comissão adequada para se explicar.

Souto Moura não foi no dia marcado, foi quando quis apenas para dizer que não tinha ainda nada para dizer.

Se bem me lembro algumas ou muitas da fugas de segredos de justiça partiram de uma funcionária, de confiança, do seu gabinete.

Souto Moura passou intocável por isto.

Mas, no entanto, em vez de responder ao que os mais altos órgão de poder do País lhe exigiram e que era tão-somente: - quem tinha mandado executar as escutas; quem tinha pedido as listas; porque foram apensas a um processo onde não deviam estar…

Souto Moura mandou a polícia à casa de um jornalista onde foi apreendido o seu meio de trabalho – o computador – à Redacção de um Jornal, onde, no melhor estilo, entraram de rompante gritando:

Tirem as mãos do teclado!

Não sabendo se apontaram ou não as armas para os atónitos jornalista fico-me a pensar na sorte que tiveram em nenhum, no momento, estar a desenhar um “cartoon”.

fevereiro 11, 2006

Como uma liberdade (Transcrição de Link)

Do blogue "Um prego no sapato" de autoria do meu amigo Henrique Jorge, retirei esta nota e o endereço de um manifesto que urge ler e assinar. Recomendo-o a todos os amante da liberdade.


Como uma liberdade
Da autoria de Rui Bebiano e Tiago Barbosa Ribeiro, aqui fica o MANIFESTO que pode ser visto e subscrito em:
http://liberdade.home.sapo.pt/

fevereiro 04, 2006

Hábitos Sociais

Os hábitos culturais são coisas insidiosas. Tanto nos facilitam a vida em comunidade, como nos precipitam em atitudes perigosas e irracionais. Para alguém que viva integrado numa determinada cultura, o particular modo de pensar e agir desse grupo aparece como “natural” excluindo todos os outros os quais serão considerados, no mínimo, como insensatos.

Tomado este postulado duas situações apareceram esta semana suscitando a minha atenção. A primeira é sobre o casamento de homossexuais e a segunda sobre as caricaturas de Maomé.

1 – Casamento de Homossexuais

Duas mulheres expuseram a sua vida comum reclamando, sobre o direito constitucional à não descriminação, o direito ao seu casamento.

Explodiram apoios e ataques e a sociedade, como é caso comum, dividiu-se nas suas posições. Em fóruns e debates assistimos ao apoio, compreensão e ataques ferozes contra o desejo destas duas senhoras e, para lá delas, à pretensão genérica de casais do mesmo sexo verem reconhecidos os seus direitos a comunhão de casa, cama e mesa.

No entanto, tal como no caso da despenalização do aborto, as posições de defensores e atacantes não são simétricas.

De facto, quem defende o direito ao casamento, ou qualquer outro instituto de reconhecimento, entre homossexuais - vendo aceite a sua tese - não obriga ninguém a seguir esse caminho. No caso contrário uma parte da população pretende coagir os outros a pensar e agir como eles próprios. Isto é, elevam a sua particular visão do mundo a um imperativo universal. O que sobre esta posição se pode dizer é que, no mínimo, não é nada democrática.

Depois, perorou-se imenso sobre o casamento e a família, como se fossem coisas naturais, sempre as mesmas, com forma fixada no tempo. Pura ilusão. As famílias são agrupamentos humanos que visam, mais que a reprodução, a ordenação e defesa de territórios e a sucessão de bens. Na sua forma comum são institutos legais.

Ora todos os institutos obedecem a um dado estado da sociedade e são alterados, para simplificar, quando esse estado muda. Nada de natureza e eternidade, portanto!

Mas, a família é também um local de partilhas e afectos. Então, se casamento não é só procriação e sucessão e se privilegiarmos os sentimentos os que faltará a estas díades para terem o reconhecimento legal da sua escolha?

A separação de um ser amado causa angústia, dor e saudade a qualquer ser humano. Seja mulher ou homem, sejam hetero, homo ou bissexual. O amor procura a luz das aceitações. Negá-las é produzir infelicidade. Vamos ignorar que milhares de cidadãos têm escolhas sexuais alternativas e obrigá-los a uma permanente clandestinidade? Não me parece que, para bem de todos, essa seja uma opção aceitável e inteligente. Vamos viver e deixar viver!

2 – Caricaturas de Maomé

A tradição islâmica não permite a representação gráfica da figura de Maomé. É uma opção, é um dogma, é um direito. Portanto, que os seguidores desse credo o cumpram e vivam com esta prescrição. A cultura dominante no Ocidente é pictural, representativa e antropomórfica. Esta é uma diferença substancial. Somos também laicos e a separação de poderes, bem como a liberdade de expressão, são valores predominantes e conseguidos após árduas lutas. Por isso deveremos conservá-los e pugnar por eles sempre que sejam atacados. Tal como está a acontecer.

Pode não ser de bom gosto a publicação de um “cartoon” que afronte a religião de alguém. Esse alguém tem todo o direito de se sentir incomodado ou ofendido e de o demonstrar de forma razoável. Manifestando-se, por exemplo, ou recorrendo a tribunal. Não tem é o direito à agressão e destruição e muito menos a coarctar o direito de outrem à manifestação de posições diferentes. Não tem o direito de determinar como é que eu vou viver, como me vou comportar e sobretudo de vir ditar ordens em minha casa.

Alguém está a exagerar e a criar um clima inquisitório no mundo. É excessivo e inadmissível. Bem ou mal o que está publicado está e foi decisão assente em modos de vivência que são os nossos. Que devemos defender. Quem não gostar que não os use, mas mande na sua casa e não na nossa.

janeiro 29, 2006

Que fazer com este Blogue?

Durante cerca de uma semana, por avaria no servidor, estive sem acesso à Internet. Assim, o que foi um percalço comunicacional transformou-se num período de reflexão sobre as razões de existência e continuidade deste espaço cibernético.

Relembro que o ponto fulcral para este lançamento foi a afirmação inequívoca, por parte de Manuel Alegre, da sua decisão de concorrer às eleições presidenciais. Passadas estas, resta saber da bondade ou necessidade de continuação destas parlendas.

Olhando para os três meses que precederam o acto de votação, para a campanha eleitoral, para as quezílias levantadas, sobretudo contra Manuel Alegre, pelos outros candidatos e muitos comentadores, fica-me a sensação de que o combate não só valeu a pena como foi eficaz.

Desde início se sabia que esta candidatura seria incómoda para o Partido Socialista. A sua má escolha e sobretudo a forma pouco edificante como as cúpulas decidiram o nome do candidato, faziam prever forte comoção no Partido. Era natural! Então, porque é que os outros candidatos e meios de comunicação ficaram tão apoquentados?

Elementar meu caro Watson!

A decisão de Manuel Alegre foi uma pedrada na paz podre da situação política no País. Todos os partidos, na comodidade da sua instalação no sistema, sentiram a ameaça como sua. Se de repente todas as pessoas começassem a por em causa as decisões dos órgãos partidários e tomassem decisões próprias; ou sentissem que a sua voz vale mais que um simples aquiescer e pudesse tomar volume e vontade própria, não teriam os partidos de repensar as suas abordagens e decisões?

Mais ainda. Afirmou Manuel Alegre que ninguém é dono da Democracia. É verdade, adiro completamente a este conceito mas, há por aí muito boa gente que pensa o contrário e age de acordo com esse pensamento.

A título de ilustração relembro um episódio – que não foi único – passado na junta de freguesia a que pertenço, aquando da discussão para eleger os representantes dos candidatos para as mesas de voto.

Estiveram presentes na reunião os representantes de quatro candidaturas e havia sessenta lugares a distribuir. Pareciam fáceis de fazer estas contas. Mas não foram. O representante de um candidato, que em termos partidários e nas eleições anteriores dispunha de 25 lugares, recusou-se a admitir a diferente lógica das eleições presidenciais, e com o pretexto de que tinha direitos adquiridos àqueles lugares, boicotou a representação do nosso candidato nas mesas de voto desta freguesia. Este pensa que é, senão dono da Democracia, pelo menos das mesas de voto. E na verdade foi-o porquanto o Presidente da Câmara, numa decisão legalmente correcta mas eticamente reprovável, por inacção, convalidou esta absurda posição.

É contra este mentalidade que se formou este movimento de apoio a Manuel Alegre e é porque ela existe que é necessário, por todos os meios e em todos os tempos, continuar a afirmar o direito à nossa diferença.

Por isso, está decidido! O Blogue continuará a viver e a expressar, do modo que os seus subscritores determinaram, os mais fundos desígnios e desejos que enformaram o movimento e apoiará e colaborará nas decisões que no âmbito deste movimento vierem a ser tomadas. Mantendo a nossa independência crítica, não deixaremos de ser parte deste colectivo que se consubstanciou em torno da figura de Manuel Alegre.

Que novos desafios e projectos surjam para que a nossa força se manifeste!

janeiro 21, 2006

Barreiro – A centralidade periférica

Trace-se um círculo ao redor da Grande Lisboa. No centro, no âmago dessa massa de gentes e construções, situa-se o Barreiro. No entanto, é mais excêntrico, mais periférico, que as periferias geográficas. A que se deve tão estranha contradição?

Delineemos uma brevíssima incursão sob a história moderna do Barreiro. Criado por gentes marinheiras que se foram radicando junto ao rio foi, mais tarde, acrescentado por ferroviários e operários das indústrias químicas. Nasceu assim uma urbe diversificada nos pólos de desenvolvimento mas unida na vida associativa e política.

O seu acentuado querer de esquerda não lhe granjeou simpatias nem benefícios na ditadura. Apesar disso e mercê da força do seu colectivo sobreviveu e a industrialização, acompanhada de fenómenos de imigração, desenvolveram, embora de forma algo caótica, a urbe.

Era de esperar que com os alvores da Liberdade um surto de progresso e modernização rebentasse na então vila da pertinaz resistência. Contudo, por fenómenos que podemos enumerar mas que só os sociólogos poderão analisar em profundidade, o Barreiro começou a ser lentamente estrangulado.

Porque é que sendo, durante tantos anos, um centro Ferroviário se viu despossuído do seu terminal e o comboio que liga a Margem Sul a Lisboa parou primeiro no Fogueteiro e depois avançou para Coina, evitando o Barreiro?

Porque é que a Ponte Vasco da Gama, envolta na polémica do seu posicionamento, foi desviada do Barreiro, local de mais forte densidade populacional, e a colocaram em zona desviada onde menor serviço poderia fornecer a esta população?

Porque é que o Metropolitano, em perspectiva, continua em cortes e plantas com miríficas datas marcadas e nenhuma solução à vista.

Se a estas interrogações acrescentarmos os efeitos do encerramento das fábricas da Quimigal, sem que outras unidades produtivas mais modernas e eficientes a tenham substituído, começamos a vislumbrar os motivos, induzidos por estranhos interesses, que estão a levar o Barreiro a uma dolorosa estagnação.

O comércio tradicional agoniza cercado pelos grandes Centros Comerciais implantados nos arredores distantes da Metrópole. A população começa a envelhecer e a diminuir, incapaz de fixar os seus jovens que procuram vida em zonas menos afectadas pelas crises nacionais ou locais, assim se entardecendo uma cidade!


No entanto, com um pouco mais de atenção dos Poderes, poder-se-ia dar prontamente um rejuvenescimento do tecido sociocultural e económico desta urbe. Esperamos pelo Polis; pela reclassificação urbana; pela devolução do rio à paisagem e lazeres da população; pela possibilidade de alargamentos do pólo de estudos superiores; pelo desenvolvimento de uma indústria forte, não poluente e actualizada; quem sabe por companhia residente de teatro, orquestra, bandas e outras actividades de religação social e, talvez, da nunca construída ponte ferro-rodoviária aproximando de vez esta centralidade periférica do centro a que realmente pertence.

janeiro 19, 2006

Glosas à Trova do Vento que passa

Com a devida vénia transcrevo estas décimas enviadas, por "e-mail", por uma amiga e da autoria de Manuel Inácio Veladas:



Mote

Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu País
O vento cala a desgraça
O vento nada me diz

(Manuel Alegre)

Glosas



Este mote ouvi um dia
Numa canção bem cantada
E por mim considerada
Das mais lindas que eu ouvia.
Quem fez esta poesia
Via o futuro sem ter graça,
Sem algo que o satisfaça
No seu exílio infernal,
Notícias de Portugal,
Pergunto ao vento que passa.




Sofreu, não desesperou
Dum sofrimento tão vil,
Mas o 25 de Abril
Afinal sempre chegou.
Satisfeito regressou
Considerou-se feliz
Por ver o que sempre quis
- Em Portugal nova aurora –
Perguntava a toda a hora
Notícias do meu País.



Dizia Manuel Alegre
No seu exílio sombrio:
Se morrer, morro com brio
Sem que à tristeza me entregue,
Por muito que alheio navegue
Sou quem o exílio abraça,
Julgo o vento de má raça
Porque o é, infelizmente.
De quem sofre injustamente,
O vento cala a desgraça.




Sofreu com brio e coragem
Esperava a todo o momento
Que até o próprio vento
Lhe levasse uma mensagem.
Não o quero em desvantagem,
- Ponham-se as pintas nos iis! –
Não sejamos imbecis
Deixemos de hipocrisia,
Lembrai-vos quando ele dizia
O vento nada me diz!


Évora, 14 de Janeiro de 2006

Manuel Inácio Veladas (Ti Limpas)

Manuel Inácio Veladas é natural de Ferreira de Capelins, Alandroal, onde nasceu e reside há 76 anos de idade.
Toda a vida trabalhou na Agricultura e, nos últimos anos, tem vindo a ajudar a construir a Confraria do Pão (Alentejo), cujo Centro de Documentação já publicou o Livro “Nasce do Meu Pensamento”, com algumas das poesias populares alentejanas que vem fazendo e aprendendo desde criança.
Com uma vastíssima e riquíssima obra, é, seguramente, um dos mais importantes Poetas Populares que o Alentejo e Portugal já teve.

ESTAS DÉCIMAS FORAM FEITAS DE IMPROVISO PARA A MANHÃ DE 14.01 EM ESTREMOZ

janeiro 14, 2006

MEGA CONCERTO

No dia 19 vamos encontrar-nos no Pavilhão Atlântico.
Que a festa dure até às tantas...

Posted by Picasa

janeiro 02, 2006

Cavacorrências

Não sei depois o que aconteceu. Não sei sequer se estou a contar um sonho. Não sei. Ninguém sabe. Ninguém nunca saberá.

Escuro, O Quadrado, Manuel Alegre





Cavaco quer ser presidente da República. Isto é, Presidente de todos os portugueses. O que é uma impossibilidade!
Até pode ser que Cavaco ganhe as eleições, mas, o que nunca ganhará é o coração de todos os portugueses. Nem sequer da possível maioria que o possa eleger.

Porque Cavaco é um equívoco!

As suas possibilidades existem na razão inversa das possibilidades do nosso Povo. Da esperança de que um Presidente, versado em economia, seja aquilo que ele não é, por não o ser e por, mesmo que queira, nunca poder ser:

Uma Providência!

Alguém fez confundir Presidência com Providência. Como se sabe, são bem distintas coisas. Existem em diferenciados níveis e funções. Não são fusionais. Cavaco, por mesquinhos interesses, permite e alimenta a confusão. Assim se cala ou dizendo não diz: repete o ensaiado monólogo da competência. Sua! Que só ele encontra nele. Que os seus próceres repetem à exaustão. Cavaco não é propriamente um candidato. É um produto.

Cavaco é também um medo!

Primeiro de si mesmo, de se descolar do boneco que vestiu. Assim o seu ar plástico. Esgar cortado na boca o seu sorriso. Virtual a comunicação. Nada é nele autêntico. Tudo é programado. Cavaco tem medo de falhar o papel.
Depois é nosso o medo de que o país possa ser exactamente aquilo que Cavaco diz que ele é:

A vocação pequenina do quase nada. O não saber. O não querer mesmo saber senão aquilo que é o Ser no mais rasteiro quotidiano. Cavaco é um medonho deserto de emoção. Uma retórica vazia. Um conteúdo de nada.

Cavaco transporta uma visão do mundo que fica “entre”!

Não é clara nem clarificável. Situa-se no terreno movediço das fronteiras ambíguas. Não é de direita nem de esquerda. Não é político, embora o seja. Não pertence ao Povo nem às elites. Situa-se entre o que é e o que deseja ser, sendo apenas o que apenas parece.

Cavaco é um simulacro de si próprio.

Poderemos dar-nos ao luxo de eleger um simulacro de Presidente? Eu não o quero! Prefiro o seu anverso. Que faz versos!