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novembro 30, 2010

As duas panelas



Duas panelas, uma de ferro e outra de barro, por proximidade de funções, tomaram-se de amizade. Um dia, num dos passeios que frequentemente davam juntas, chegaram a um terreno pedregoso. Para atalharem caminho propôs a panela de ferro que o atravessassem, que já o sol ia alto. Temeu-se do agreste do sítio a panela de barro. Objectou que seria melhor chegar um pouco mais tarde e não se arriscarem por tão perigoso local. Consciente da sua robustez disse a panela de ferro que nenhum risco adviria daquelas pedras inertes do caminho.
- Pois, para ti não há perigo que és de ferro, mas eu, que sou de barro, se escorrego e embato contra qualquer daquelas esquinas aceradas, despedaço-me.

- Não despedaças nada porque te vais amparar em mim.

Dito e feito. Apoiando-se na panela de ferro lá se aventurou a entrar naquele terreno perigoso. Alguns passos dados a nossa frágil panela tropeça. Para não cair procura o amparo da sua amiga. Pressurosa, esta, apressa-se a dar o seu arrimo. Nesse momento, porém, ao apoiar-se na panela de mais forte material a pancada da junção fez estilhaçar a pobre panela de barro.

Desta história, lida algures num livro da instrução primária, retirava-se a lição de “cada qual com seu igual”, o que estava muito de acordo com a moral dos tempos. Se a ressuscito agora, é porque, com um enfoque diferente e mais alargado, ao observar o comportamento do nosso país na União Europeia, a imagem parece ganhar forças e adequar-se aos acontecimentos.

Saudei, de um ponto de vista meramente pessoal, a entrada na Comunidade Europeia e, posteriormente, a adesão à zona Euro. Nesse tempo, mercê de actividades profissionais, deslocava-me com frequência ao estrangeiro e a passagem de fronteiras e o câmbio de moedas eram um verdadeiro aborrecimento e perda de tempo. Por isso me entreguei de corpo e alma à ideia de união. Devo porém confessar que de tempos a tempos, incómoda, me passava pela cabeça a história das duas panelas. A perda das pescas, da agricultura, o encaminhamento para um mercado pouco qualificado de prestação de serviços e a subida de preços causada pela introdução do euro foram campainhas de alarme a soar no meu espírito. Mas eu não as queria ouvir. Encandeado com as facilidades pessoais achava incómodo e retrógrado os chamamento de alerta que alguns – poucos – iam fazendo. Pensava mesmo que eram uns chatos. Não queriam evoluir e agarravam-se a modos passados de vida. Como a crise veio agora demonstrar eu é que estava enganado. Passado o tempo da sedução a realidade acorreu, brutal, reclamar o seu pagamento. Olhámo-nos e vimo-nos mais pobres, de soberania diminuída e sem possibilidade de influenciar as grandes nações que decidiram criar uma Europa só para elas ou, pelo menos, onde elas dominem todas as outras. Descalços e rotos, de chapéu na mão, rogamos à porta da festa nos dêem uma côdeas para não perecermos de fome. Mas, como não gostamos desta imagem, abolimos os espelhos e recobrimo-nos com os breves ouropéis que o crédito, durante algum tempo, permitiu. De resto, caminhamos, alegremente, para o abismo.

Reconheceu o FMI serem comuns as causas das crises de 1929 e da actual. A ausência de uma redistribuição equitativa, como causa de acumulação desmesurada num dos extremos da escala social e a concomitante falta de liquidez da maior parte, leva as populações a um endividamento excessivo, causador de desequilíbrios económicos e graves problemas sociais. Ainda bem que o FMI descobriu agora o que já todos sabíamos há muito tempo. O que me espanta é que tendo revelado esta verdade não tenha mudado em nada a sua actuação e continue, com os seus programas, a alimentar e libertar – de forma aparentemente suicidária - o monstro que descobriu.

Esquisito, não é?


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

novembro 17, 2010

O Pensamento Selvagem



Em interpretação bastante livre atribui-se ao pensamento selvagem uma abordagem mítica da realidade, a explicação do actual por um anterior dourado, a função mágica da palavra. Mais sucintamente dizer ou desejar poderia ser o suficiente para fazer acontecer.

Recordaram-me estas antigas noções da Antropologia Estruturalista as palavras, ouvidas ainda na cama, ao acordar, de uma intervenção do Presidente Cavaco. Na sua rara eloquência e finamente recortada oratória, com a riqueza de imagens e a criatividade que o caracterizam mais ao seu discurso, dizia ele, de modo enfático, que como forma pessoal de combate à crise iria deixar de utilizar tal palavra nos seus discursos. Passaria, portanto, a referir-se a ela de forma enviesada como “os tempos”. Não me parece que os media tenham dado grande atenção a esta possibilidade de ultrapassagem do mal pela recusa da sua nomeação. Fizeram, portanto, mal.

Fizeram-no quando não perceberam que na incapacidade de diligenciar qualquer coisa de útil para aliviar-nos da dureza da existência, este homem reconhecidamente carinhoso, culto, livre-pensador e de discurso fluente como ribeiro primaveril, elaborou um estrénuo esforço para, magicamente, debelar a dor que nos rodeia. Espírito compassivo, farto de avisar, em vão, os políticos – que ele jura não é, não foi, nem será – para os perigosos caminhos que cegamente vão percorrendo, investido de uma força metafísica proveniente do sacro lugar que ocupa (mais por vontade de entidades sagradas que do votos expressos pelos cidadãos) lança, tonitruante, a sua voz, de preclaro poder emanado de altíssima fonte, como exorcismo capaz de modificar a mais abstrusa realidade. A partir deste momento, a crise deixará de existir. Ao ser solenemente abolida do discurso, por um desejo mais forte que o comum, não teve ela outra escolha que dissolver a sua consabida materialidade.

Este xamã dos novos “tempos”, descobriu, por mero acaso, as suas capacidades mágicas ao entrar em campanha para assegurar por mais cinco anos o seu sacro sacerdócio, a possibilidade de estender a sua bondosa vontade sobre o desditoso povo acima do qual paira e para o qual, nos anos anteriores, nada tinha a dizer, a fazer, ou nunca era o local apropriado para o Presidente se pronunciar fosse lá pelo que fosse. Descobriu portanto, agora a força da palavra. Se antes só se manifestava com veemência quando as coisas o tocavam pessoalmente – ver estatuto dos Açores ou a comédia das escutas – sabe agora que basta fazer os ritos purificantes, conduzir com unção a liturgia e o anátema ou a glorificação nascerão da sua vontade consubstanciada em miraculosas palavras que, de supetão, mudarão só por si, a face visível das coisas.

Há gente assim, com estranhos e maravilhosos poderes! Basta que um lugar - nunca desejado e sempre imposto pelo dever - surja na hierarquia do Estado para que eles surjam com seus poderes encantatórios capazes de, em passe mágico resolverem, de uma só penada, todos os problemas que não só não conseguiram resolver durante todo um mandato com, muitas vezes, foram as causas eficientes para o seu aparecimento.

No entanto, onde o verdadeiro poder do seu pensamento mágico melhor refulge é na certeza que se vai subtilmente instilando de que teremos de aguentar o personagem por mais cinco anos. Isto sim, é pensamento selvagem, é rito, é mito, é a evidência de que continuaremos na nossa triste senda de incapacidade de desenvolvimento e renovação, trocando a árdua tarefa da modernização e democratização dos espíritos e da sociedade por uma qualquer retórica, analógica ou de contiguidade, instituída em actuante feitiçaria resolvente de todos os problemas que afrontam o nosso bom povo.

Votem de novo no homem, votem! E depois queixem-se!


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

novembro 05, 2010

Vejam só esta tremenda coragem





Pronto! Descansai corações o orçamento vai ser viabilizado. Exultai, pois portugueses, que os mercados, tendo em conta o consenso conseguido, irão atender as vossas piedosas preces e prescindirão do suave lucro a que se julgam com indubitável direito. Tudo isto porque o governo teve a formidável coragem de nos espoliar e o PSD, fazendo que tomava amargo e obrigatório remédio, de careta afivelada, pedindo desculpa aos seus maiores, num outro tipo de coragem, se irá abster, deixando assim seguir um orçamento de que ninguém parece gostar, mas a quem ninguém se ousa eximir.

Tanta coragem envergonha-me não só perante a minha evidente cobardia, como ante a impossibilidade de perceber a propalada inexistência de alternativas.

De facto, muito dificilmente eu conseguiria ser, como eles, um Robin Hood ao contrário. Falta-me o necessário valor pessoal - ou desfaçatez - para roubar os pobres para dar aos ricos. Compreendam! É uma falha de carácter que assumo. Nada posso fazer para a modificar e tenho de me habituar a viver com este peso na consciência. Nem mesmo o estrénuo exemplo do nosso primeiro, de tão aprimorado amor à verdade, consegue motivar-me para tão nobre cruzada. Sim, eu também li Giddens! Também eu tentei perceber a possibilidade de novas linhas de actuação sociopolítica. Só não entendo como, a partir dessas ideias, viemos parar neste absurdo onde as palavras mudam de sentido e o que se afirma é, por norma, o contrário do que se faz ou manda fazer. Esforço-me por compreender como é que um partido socialista, conservando algo do discurso de origem, se torna tão servil a teses neoliberais, produzindo um efeito perturbador de pessoas e conceitos, transformando em insegurança e descrédito o dia-a-dia dos cidadãos, turvando as convicções, tornando o mundo ilegível, transformando-o numa coisa, por desconhecida, ameaçadora.

Tudo isto começou, já referimos, com as generosas tentativas de Anthony Giddens de tentar uma via que não sendo o feroz neoliberalismo de Thatcher e Reagan, aproveitasse dele as ideias de liberdade e mercado o qual, com alguma regulação, deixaria sobreviver o mais importante do estado social. Se a tentativa foi generosa os efeitos deixaram muito a desejar: Clintton viu fugir-lhe o serviço nacional de saúde, uma das mais importantes bases da sua campanha; Guterres, em hora de lucidez, ao ver a que pântano tal casamento ideológico conduzia, desertou; Tony Blair caiu na guerra do Iraque, ao lado de Bush. Todos, de uma forma ou outra, acabaram dominados pelas lógicas dos mercados financeiros, pela coacção das deslocalizações, pelo menosprezo das gentes. Claro que num estado inicial eles interessaram ás forças movimentadoras dos capitais e do mundo. Aliás, em Portugal, o Partido Socialista sempre foi utilizado como arma para infiltração do inimigo no forte. A firme coerência dos mandantes mostra-nos que uma vez penetrado o reduto, por desnecessário, dispensam o servidor e procuram alguém que vista, sem rebuços, a sua cor. Eles, que leram a Bíblia, sabem que ninguém serve bem a dois senhores e lembram-se disso no momento exacto. Por cá, após o interregno tragicómico do desgoverno de Santana Lopes, lá veio Sócrates, menos informado e mais confuso, agarrar, a destempo, com os brilhantes resultados que se conhecem, o facho da terceira via. Presumo que, por mau entendimento e grande pendor tecnológico, numa analogia com os jogos de vídeo, pensou tratar-se da terceira vida. Daí a possível confusão que o leva a vangloriar-se despudoradamente da tremenda coragem necessária para coligir o triste esbulhamento que propôs à Assembleia. Dou comigo encanitado e retorcido a apelidar o governante de epítetos que nem a mãezinha, nem o padrinho, alguma vez pensaram chamar-lhe. É que acho enorme desplante e muito mau gosto vir alguém gabar-se por bater nos mais fracos. Penso mesmo que tal feito é apanágio de personalidade com baixa estrutura moral por quem só podemos sentir a máxima desconsideração. Faz-me lembrar aquele tipo que, numa roda de amigos, modestamente se gabava por ter dado uma valente surra num matulão muito maior e mais forte que ele. Ainda gozava da sua pequena glória quando um dos convivas perguntou: Mas esse tipo não é cego?

Esta pergunta inconveniente deitou por terra o mito da coragem do contador.

O segundo corajoso, de seu nome Passos Coelho caracteriza-se pelo heroísmo da responsabilidade. Tal significa para ele viabilizar o orçamento mas, para que não haja dúvidas, fazê-lo em claro repúdio pelo conteúdo daquilo que se obriga a aprovar. Sensibilizado por tão denodado sacrifício o povão vai em massa transferir o seu voto do malandro do esportulador para este novo actor de discurso tão amigo. Desenganem-se porém crédulos votantes de todos os candidatos errados. Descodifiquem-lhe o discurso e verão, por detrás da ambiguidade das palavras, que, na essência, ele defende o mesmo apertar de cinto que o governo. Apenas queria que tivesse começado antes e fosse mais fundo. Porque quando Passos Coelho se refere a cortar na despesa, não estará, porventura, a pensar na mesma despesa que nós. Para ele os cortes serão nas comparticipações patronais para a Segurança Social, debilitando-a por esta via, logrando assim a sua rápida decadência e substituição por seguradoras, apenas interessadas em utilizar o dinheiro dos pagantes para especulações financeiras, atendendo apenas aos seus lucros pessoais; quando fala em cortar despesas está a pensar em diminuir as verbas destinadas à educação, canalizando para escolas particulares - onde só terá lugar quem for pagante activo - todo o dinheiro que puder desviar do ensino público, condenando-o ao insucesso e à insignificância; visa ainda reduzir os postos de trabalho e vencimentos na função pública, cortar nas reformas, abrindo o caminho para que o desemprego resultante force as gentes do trabalho a vender a sua força por menor preço, aumentando o lucro do capital financeiro e reduzindo ao máximo, por anemia do Estado, a redistribuição de bens e valores pecuniários.

Este é o intuito salvador de Passos Coelho!

Entretanto, alegrai-vos corações que o orçamento vai ser votado e passará para execução, esperando estes nossos corajosos que os mercados, sensibilizados por tão baixo seguidismo, se condoam destas boas almas e deixem de especular com o valor dos empréstimos. Tanta ingenuidade põe-me parvo o espírito. A verdade foi reposta logo no dia da discussão do orçamento na generalidade. Aumentaram novamente os juros. E aumentaram ainda no dia a seguir atingindo de novo quase o nível máximo em que se tinham situado. Aumentarão ainda mais até atingirem os 7% indicados pelo ministro das finanças como limite para recurso ao FMI.

Ontem, numa entrevista dada pelo Primeiro-ministro à TVI, perguntado sobre a possibilidade de apelo aos bons serviços dessa instituição, com veemência e coragem, desautorizando mais uma vez o seu ministro, garantiu que nunca o FMI entraria em Portugal.

Conhecendo o valor das suas palavras já mandei limpar o fato com que irei ao aeroporto esperar a delegação que, por esta altura, já estará, certamente, a preparar as malas.

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt