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dezembro 08, 2009

Igreja do Lavradio – uma falhada sistina?




Na passada sexta-feira, no almoço da Tertúlia do Pato Bravo, comentava com o Nuno Banza e o Sousa Pereira, o quadro sobre a Paixão de Cristo, encomendado pela Igreja do Lavradio ao Pintor Kira. Dizia eu que aquela tela haveria de fazer história. Para tal baseava-me na concepção da obra, a qual, apesar de algumas servidões ao gosto litúrgico, impostas pelos encomendadores do quadro, arrojava-se, nas figuras que acompanhavam a morte de Cristo, a representações pouco ortodoxas e, por isso mesmo, fortes e demonstrativas da compunção e tristeza gerais acarretadas pela morte do Filho do Homem.

Era baseado na iconoclastia destas figura, que o meu comentário, no citado almoço, apontava para um atribulado caminho para esta obra. Só não pensava que, naquele mesmo momento, essa história já tinha começado. Soube-o pelo Blogues Pintor Kira e Poleiro Pá. Afinal, a inauguração do quadro, que deveria ocorrer no próximo dia 8 de Dezembro, inscrita num cerimonial mais vastos, com ordenação de padre e presença de Bispo, já não iria acontecer. Porquê? Porque os bons padres se negaram a pagar o trabalho e pretendiam que o mesmo fosse oferecido à Igreja. Achei esta atitude abusiva e pretendi saber a verdade dos factos. Para tal nada melhor que perguntar ao Pintor como este desencontro tinha sido possível.

Segue-se, resumidamente, a história.

De há uns cinco anos a esta parte o Kira vinha a ser solicitado para fazer um quadro para a Igreja do Lavradio. Dada a sua orientação artística não ser a da arte sacra foi adiando a questão até que, este ano, por maior insistência decidiu anuir ao pedido. Foi-lhe então encomendada a execução de dois quadros, uma crucifixão com as dimensões de 3 metros X 2 metros, para a Igreja e um outro de 2 metrosX2 metros para o baptistério. Perante a monumentalidade da obra o pintor comunicou aos padres não ter dinheiro suficiente para comprar as telas. Do então argumentado ficou patente que a Igreja adiantaria o dinheiro para os materiais e que o pintor faria depois um “preço para amigos”. Acertadas as coisas recebeu o custo da tela maior e começou o trabalho pagando, do próprio bolso, algumas centenas de euros para os restantes materiais. Durante os seis meses que durou a concepção e concretização da obra não foi possível ao pintor pegar em qualquer outro trabalho. Os padres sabiam disso pois não só foram acompanhando a feitura da obra como requereram algumas modificações. Mais, sugeriram ainda que fosse pensando numa Via Sacra para a Igreja. Ora a Via Sacra é composta por 15 estações, o que significava a elaboração de quinze pinturas alusivas, todas de grande porte. Quase dava, com ironia e pelo tempo necessário a tal consecução, para que se assinasse um contrato de trabalho a muito longo termo. Estas questões foram ganhando, pelo que agora se entende, uma estranha ambiguidade. Assim, para o Kira o trabalho seria remunerado com um preço a combinar, para além dos custos dos materiais. Para os bons padres o trabalho seria suficientemente remunerado com o pagamento da tela (esquecendo as tintas, o tempo, o trabalho e a concepção) e o sublime privilégio de tornarem o Kira numa espécie de Miguel Ângelo, mal pago, do Barreiro. Não ficou claro se o artista deveria ainda fazer um agradecimento à Igreja pelo favor de se ver espoliado do valor do seu ganha-pão

Partindo do princípio que na sua produção o pintor fará uma média de 1.500 euros por mês, só o custo do tempo de trabalho investido neste quadro seria de 9.000 euros. Com os materiais gastar-se-iam, no mínimo mais 1.500 euros, ficando (sem ter em conta a remuneração artística) o quadro em 10.500 euros. Este preço seria, em termos de mercado de arte, muito baixo para a obra apresentada. No entanto o que o Kira pediu como remuneração era tão-somente cerca de 10% deste valor. Na verdade um preço mais que de amigo. A que responderam a isto os santos homens? Que esperavam que ele fizesse a oferta das obras à Igreja, fazendo com que o ofendido e pré-espoliado artista perguntasse se iria alimentar a família com hóstias.

Com os acontecimentos nesta posição, o quadro que já estava na Igreja, foi retirado e está agora no atelier do pintor à espera do seu destino depois de o Kira, num acto de grande honestidade, ter devolvido à Igreja o dinheiro adiantado para a tela. É uma pintura de venda problemática, mais pela sua envergadura que pelo tema. Somente poderá figurar num grande salão sob risco de, em qualquer outro lugar, esmagar qualquer envolvência. Fica-me pela mente a pergunta se estamos, pela parte da Igreja, perante uma grande ingenuidade, desconhecimento do real da vida, má-fé ou ainda outros pressupostos de que é melhor não falar. Para melhor compreensão do quadro e de possíveis motivações não ditas, cito uma apreciação do mesmo feita, num comentário no Blogue Kira Pintor, pela Dr.ª Fernanda Afonso:

“Gostaria de acrescentar algo ao que tem sido dito. Parece-me que a situação o merece. Vejamos o quadro. Este representa, no plano central, o acto sacrificial de Cristo. Na base, a lateralidade das figuras mostra a unanimidade solidária com o acontecimento.
Porém, as personagens não elevam, todas, os olhos para o Senhor ou para a pomba - os padres olham-na directamente, tal como a criança (perplexa) e os homens da "urbe", e por este mesmo facto, indiciam no seu recolhimento a consciência da tragédia no Presente. E o pintor?. De frente, interpela-nos com o olhar, sendo ele o agente da denúncia: Cristo sacrificado está vivo nos dias de hoje. Não é isto uma soberba forma de olhar o sagrado?
A igreja deveria estar grata por uma compreensão tão profunda da crucificação. Não a teve. Caso contrário, honraria o pagamento devido pelas telas, pelas tintas, já que o quadro é a dádiva do pintor à Igreja de Cristo - a da tolerância. Como se acha no direito de só pagar a tela? (parece que nem todo o custo é coberto). E o restante? Não é oferta suficiente a obra de arte?
Cristo não gostaria desta atitude que mais parece de vendilhões do templo... A César o que é de César, a Cristo o que dele é, ao pintor o que se lhe deve!”


Quanto a mim, modesto e inconformado figurante na obra, limito-me a pensar que esta Igreja – parece que em crise ética - perdeu a única possibilidade de alguma vez me ter, nem que fosse deste modo, dentro, ou sobre, as paredes dos seus templos.


Publicano in "Rostos on line"