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junho 24, 2008

Memórias 8





Depois fiz prosa

em colunas

paralelas


troquei

a cor verde

pela amarela

e proferi palavras

só palavras...


Fiquei à espera

que elas caíssem

e se partissem


as palavras caíram

ao mar

e não revelaram

o segredo que tinham


então eu chamei cruel ao mar


Como se ele pudesse

ser mais

alguma coisa

do que mar




Évora, 1965

junho 17, 2008

Ai a raça do petróleo






A semana passada foi para todos os gostos. Das gafes dos nossos maiores aos apocalipses paroquiais foi mesmo um “vê se ta avias”. Parecia haver uma competição de acontecimentos e alarvidades. Era um fartar vilanagem a perturbar o consabido sossego desta terra abençoada.

O artigo 605º do Código do trabalho tem duas alíneas. A primeira é absolutamente clara e inequívoca. Diz simplesmente:

- É proibido o Lock-out.

Nada mais acrescenta que possa levar advogados ou hermeneutas a considerarem interpretações variadas. O Lock-out é universal e determinantemente proibido.

A segunda alínea define o que é considerado Lock-out. Tipifica-o como qualquer decisão do empregador que leve à “paralisação total ou parcial da empresa” à “interdição do acesso aos locais de trabalho a alguns ou à totalidade dos trabalhadores” e ainda qualquer actuação que “vise atingir finalidades alheias à normal actividade de empresa”.

Com isto em mente fica claríssimo que a Greve dos camionistas não foi uma Greve mas um Lock-out. Quem a convocou e manteve foram os proprietários das empresas de camionagem, levando no embrulho os seus trabalhadores.

Deste modo, nos termos da lei, o Governo estava perante uma ilegalidade que não poderia tolerar. Mas esta gente governativa, a quem cem mil professores ou duzentos e cinquenta mil trabalhadores na rua não impressiona, ficou varada e incapaz de reagir perante um número bem menor de donos de empresa que acharam poder fazer o país refém, de molde a exercer uma chantagem intolerável sobre a fraca governança deste reino.

Assistimos, em diferido e directo, à mais completa insanidade e prepotência daqueles que, partindo de anseios porventura legítimos, utilizaram meios inadmissíveis no seio de uma impunidade absoluta. Vimos e ouvimos os discursos hipócritas de quantos alegando a sua justiça “alertavam” os não aderentes para “a possibilidade de sofrerem ataques às viaturas” se não aderissem à paralisação. A polícia estava perto e ouvia. Os carros eram apedrejados e incendiados. Estranhamente a polícia não agia.

Não sei porquê, esta situação aberrante levou-me a recordar o Chile de 1973.

No decorrer deste confronto o nosso Governo entrou de férias e, muito eleiçoeiramente, demandou as comunidades da diáspora na cata ligeiramente antecipada de uns votitos, abandonando o país às ameaças de cortes alimentares e de combustíveis. Com êxito para os donos dos camiões. Na verdade, nem outra coisa era de esperar num país que abandonou qualquer outra forma de transporte de bens essenciais. Desmantelou-se a rede ferroviária, destruiu-se a cabotagem e agora, sempre que quiserem, os camionistas podem encostar uma faca ao pescoço do Governo, porque não há alternativas civis. Tal como não há pescas, nem lavoura.

Com muita galhardia descobrimos o caminho rodoviário para a dependência total!

Entretanto o nosso Presidente, hábil crítico da incultura política da juventude, num lapso piramidal, mostrava a sua cultura reintroduzindo nas festividades o “dia da raça”, momentos após um discurso onde glorificava a multiculturalidade do nosso povo. Vivam a cultura e a coerência.

De caminho, como não quer a coisa, o nosso primeiro confessava que no meio deste granel todo, aquilo que verdadeiramente o preocupava era a sua carreira política ameaçada pela espada de Dâmocles do plebiscito irlandês. Como vimos tinha razão para temer e, coitado, neste momento a sua continuidade na grande política é apenas um vislumbre porque os malandros dos irlandeses recusaram aceitar um tratado que ninguém sabe bem o que é, porque assim o pretendem aqueles que dele se vão servir em seu próprio proveito.

É claro que como o voto popular não serviu os interesses das elites estas, no lídimo papel de educadores e dirigentes, levarão o seu respeito pelo voto popular até à mudança a seu favor ou, caso extremo, ao castigo dos que ousaram exprimir uma opinião que não serve os senhores.

Vão iniciar-se brevemente as reivindicações de outras classes profissionais directamente afectadas pelo aumento dos combustíveis. Desde já lhes digo que, pelo andar da carruagem, estão tramados. Como os seus efeitos na economia do país são menos espectaculares e mais diferidos no tempo vão pagar pelo que os camionistas fizeram. Ou se precatam ou serão o exemplo que irá restaurar a honra perdida deste Governo. Que eu me perdoe a mim próprio por citar Santana Lopes, mas há que reconhecer que desta vez tem razão: “Este Governo é forte com os fracos e fraco com os fortes”.

Voltaremos a ver, com alguma brevidade, os camionistas na rua. È que, ao contrário daquilo que o Governo afirma, a situação não ficou resolvida. Está apenas em espera atendendo à evolução do preço do petróleo. E esse, meus senhores, não vai para de crescer. O paradigma em que a nossa sociedade assenta de combustíveis menos caros e fáceis, já era. Estamos perante uma mudança civilizacional de que apenas entrevemos a orla, mas que será profunda e assentará em princípios diferentes daqueles que estamos habituados. Esta civilização morre lentamente nos seus pressupostos ultrapassados por (in)coerências económicas que ela própria gerou, como contradições, no seu seio. Está desorientada e não sabe como agir porque a realidade se desviou do modelo que traçara. Isto é inevitável e preocupante. A civilização do petróleo, atentem no que digo, acabará, como todas as outras, num arfar apocalíptico e sangrento que será o banho lustral da sociedade a vir.

Por isso, a semana passada foi demais, por tão claramente servir de aviso ao que aí vem. Precatemo-nos pois e tentemos ultrapassar, da melhor forma possível, a fronteira dolorosa que se avizinha.

Fernando Pessoa, no entanto, nasceu há cento e vinte anos.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/


junho 09, 2008

falenas III





no cursivo do corpo movimento alar

minha barca viste

drapejar


as tuas asas de encontro

ao trombo do tempo

revivem em memória


diurnamente

estilhaço o teu ser envidraçado

afago tua história


no rebentar azul da cidade

descubro o meu cansaço


com rigor e claridade

da sombra me desfaço

junho 04, 2008

Cultivar, pescar, alimentar

Posted by Picasa



O mundo está com fome e a fome vai aumentar!

O Belegário espuma de raiva ao ler, em jornal nenhum, este título de arrasar. Pergunta-se como é possível, num mundo tecnologicamente evoluído, onde a produção pode ser elevada ao nível quase que se quiser, haver algum ser humano com fome.

No entanto, são milhões. Há fome na África, há fome na Ásia, há fome na América Latina e na outra também e, admiração geral, descobriu-se que também havia fome em Portugal.

A pergunta que se impõe é: Então porquê?

A simplicidade da resposta arrepia.

Porque o interesse particular de alguns homens e corporações ganha imenso com isso. Porque o pensamento liberal só o é para uns quantos seres economicamente dominantes e é, simultaneamente, escravizador para amplas massas humanas, assim o querendo ser e assim se impondo. Porque a globalização arrecada, em poucos bolsos, os benefícios e exporta, para todos os restantes, os prejuízos. Porque são precisos muitos pobres para fazer um rico.

Na verdade, a mãozinha invisível, do Sr. Adam Smith, anda um tanto ou quanto anquilosada. Sempre atarefada no difícil trabalho de assegurar a muito propalada bondade do mercado, através da lei da oferta e da procura, desorienta-se sempre que é mais necessária e vá de correr – a seu favor - ao hospital da intervenção de Estado, o tal que, quando as coisas correm bem, não pára de invectivar para que desapareça do nosso dia-a-dia, deixando-os comer o que querem e como lhes apetece. Foi assim em 1929 com os frutos que se viu e parece que, globalizantemente, caminha para um novo surto de perigosíssima, se não mesmo mortal, artrite diferencial.

O liberalismo dá-se mal com a realidade e com a equidade. A concorrência real não é perfeita, o mercado tem desvios consideráveis, nunca considerados, e os prometidos bons resultados dessa enorme liberdade de compra e venda, nunca chegam e, pelo contrário, a miséria, a doença e a guerra estão sempre ao fim da rua onde mora a artrítica mãozinha, invisível nos benefícios para a comunidade, muito apercebida nas desgraças que lhe causa.

- Isto pode lá ser – regouga o Belegário - só porque os chineses e os indianos começaram a beber leite e a comer carne entra o mundo todo em polvorosa. Quando se abriram as fronteiras do comércio isto não era já previsível? E não se tomaram medidas?

Claro que se tomaram, respondo eu. Então as grandes corporações não fizeram armazenamentos de bens essenciais para os retirar do mercado e conseguirem assim, artificialmente, a subida dos preços? Não se pagou rios de dinheiro para que os campos ficassem incultos, as pescas paradas, para manter num valor excessivamente elevado os bens alimentares?

- Valor alto? Isso dizes tu. Os agricultores e os pescadores queixam-se de que vendem extremamente barato o fruto do seu trabalho...

-...e que nós pagamos caro como o diabo.

Por isso o Belegário rói as unhas no desespero de não perceber a lógica destas coisas. Dá um murro na mesa e desesperado diz:

- Isto só lá vai à porrada!

Perdoem ao Belegário este tom agreste. Não é ele a falar, é o desespero de sentir-se tolhido, de querer tocar a vida para diante com dignidade e ver todo o construído com tanta esperança e esforço, a esboroar-se velozmente à sua volta, sentindo que não tem mãos para agarrar a desgraça que se aproxima. Vê os preços dos combustíveis a trepar incessantemente e apercebe-se que esta civilização, assente em movimentações fáceis, pode ruir de um momento para o outro, arrastando na voragem todas as coisas e as gentes, sem que se possa fazer mais que soltar um longo gemido ou um arrepiante estertor final.

- Raios! Mas não se pode fazer nada?


Claro que pode. A esperança é a última coisa a morrer. Podemos unir-nos contra o pensamento único dominante. Podemos pará-lo, obrigando os governos a racionalizar a distribuição. Porque os bens não são, ao contrário do que dizem, tão escassos assim. Estão é muito mal repartidos. Neste momento a crise não é de falta de produção. É de míngua de distribuição. É de açambarcamento e ganância. Se nada for feito para contrariar esta conjuntura, deixemos de lado o complexo de Cassandra, caminhamos alegremente para o descalabro social e económico. Ai isso é que caminhamos.

- Então e o Povo de Esquerda, que é dominante neste país, está quieto? Não faz nada para inverter este estado de coisas?

Ai Belegário, Belegário! O povo de esquerda és tu e eu e todos os outros. Se nós nos mexermos todo o povo de mobilizará. Começa por ti. Faz o teu trabalho correctamente e exige a recompensa do esforço cometido e do produto conseguido. Deixa de lado distribuições de trabalho que não visem o bem-estar das pessoas. Diz à Economia que não é ela que dirige as sociedades, mas que existe para a servir. Liberta a política do domínio dos grupos de interesse e, como sempre fizeste, como sempre fizemos, cultiva, pesca, estuda e distribui equitativamente o produto alcançado. Não precisarás de maiores estratégias...

- Tudo bem, tudo bem! Mas como é que fazemos isso se toda a gente anda dividida e todos contra todos?

Observa os sinais. As sociedades nunca se põem problemas que não possam resolver. Tu és parte da solução. Deixa que as partes se juntem e a solução aparecerá clarinha e por inteiro. Está atento ao que nos une, ultrapassa as divisões e vais ver que resulta.

Estás pronto para isto, Belegário?

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/









junho 02, 2008

Memórias 7 - Eu




tive a guerra no sangue

o sangue nas mãos

o corpo na terra


tive o sono leve

pesado era o sonho

que não me deixava


tive o corpo breve

cansado no ar

cansado no chão


eu comi a terra

eu comi o sol

a pele morena

fez-se toda dor


e para esquecer

que a terra vadia

me comia a mim


eu comi a terra

eu comi a lua


ou pensei assim



Guiné- Bissau 1968