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dezembro 09, 2006

O Vítor

Numa tarde de sábado, acerca de dois meses, quando, no estacionamento de um supermercado, acabava de arrumar as compras na mala do carro, fui surpreendido pela manobra de um condutor que travou no lugar ao lado de forma admiravelmente rápida, hábil e sonora.

O desembaraçado chegante desceu o vidro da janela e com o sorriso luminoso e aberto de quem encontra algo desejado, Há muito perdido, disse:

- Olá! Eu sou o Vítor!

Com certeza espantou-se -me na face a admiração porque logo de imediato acrescentou:

- Não te lembras de mim?

Confesso que não reconhecia aquela cara de lado nenhum. No entanto dava tratos à memória para me recordar de algum encontro onde tivesse conhecido aquela pessoa franca e contente que começava a ensombrar-se pelo meu esquecimento.

Vá lá, recorda-te, o Vítor, lembras-te? Então, o Vítor…

Eu não me lembrava coisíssima nenhuma do Vítor e já começava a sentir-me meio culpado. Tartamudeando foi-lhe dizendo que lamentava mas não me conseguia recordar.

- Não te recordas? Mas nós trabalhávamos juntos… e deu-me alguns detalhes que me pareceram condizer com um local onde de facto trabalhara.

- Será de Empresa X? Perguntei, meio aliviado.


- Precisamente…

- De qualquer forma não me lembro.. e fui-me lentamente recordando de um Vítor que tinha trabalhado comigo e que deixara o emprego para terminar a o curso de direito. Perguntei-lhe se era esse Vítor e logo o sorriso reacendeu e aquiesceu entusiasmado.

- Sabia que te havias de lembrar… E continuou desfolhando algumas recordações, em que não me revia, mas que poderiam bem ter acontecido, atribuindo eu à minha má memória o olvido de tais factos.

Eis senão quando me diz ter trocado a licenciatura em direito por um lugar de Comissário de Bordo na TAP e, num gesto largo e generoso põe-me nas mãos um estojo de reputada marca com um relógio para senhora e outro para homem.

Fiquei atrapalhadíssimo. Que não podia aceitar os relógios. Ele, a por o ar de quem recebe grave afronta, reiterando o prazer de me encontrar ao fim de tantos anos para eu estragar tudo recusando a sua oferta.

Contra o seu semblante contrariado consegui por fim entregar-lhe os relógios e já me preparava para entrar no carro quando subitamente, puxando de uma máquina de filmar digital ele disse:

- Olha, para comemorar o nosso encontro é tua por 300 euros…

Olhei para ele e para a máquina. Era da plástico, a lente deveria ser um vidro grosso, made in China ou Taiwan, e aquele Vítor nunca seria o Vítor que eu levemente conheci.

- Não quero máquina nenhuma e você não me conhece de lado nenhum…

- 150 Euros, respondeu-me.

- Desapareça!

- 50 Euros…

Saquei do telemóvel e informei-o de que iria ligar à polícia e lhes daria a matrícula do carro.

Num ápice, com a mesma maestria com que estacionara, fez uma rapidíssima marcha atrás e saiu, em velocidade constantemente acelerada, do parque.

Entrei no carro e fui-me a pensar na lata do tipo e na habilidade com que fora sacando informações para me baralhar na conversa e chegar a fazer-me desejar recordar os factos de reconhecimento que ia inventando.

Ontem, a caminho de Sintra, parei na estação de serviço da Ponte Vasco da Gama. Tinha acabado de atravessar o caminho quando, atrás de mim, dois leves toques de buzina, me chamaram.

Um homem de quarenta anos, bigode bem aparado, um sorriso grande como um largo, descia o vidro do carro e com enorme contentamento dizia:

- Então, não te lembras de mim? Eu sou o Vítor!

Voltei-lhe as costas e fui tomar o pequeno-almoço.

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