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outubro 20, 2010

Tramadex, S.A.










A primeira vez que tive a sensação de que estávamos a ficar “lixados” foi quando, no fim dos anos oitenta, integrando uma comitiva de dirigentes de empresas, visitei um centro de formação ligado às indústrias metalúrgicas. Trabalhava então numa grande empresa de Obras Públicas que mantinha um amplo sector de apoio metalomecânico numa imensa nave, onde o ruído de ferro contra ferro, guinchos de fresadoras e tornos, em conjunto com a movimentação de gentes ou máquinas, em ambiente escuro e polvorento, causavam sensíveis perturbações psicossomáticas a quem quer que ali se demorasse. Era o reino do fato de macaco azul, da multidão, da rudeza. Dos variados acidentes causados pela perturbação reinante.

Despertou a minha curiosidade, na visita, uma sala de bom tamanho, francamente iluminada pelas amplas janelas por onde o Sol jorrava sem entraves, onde duas filas de dez máquinas cada – de um lado tornos, do outro fresas - trabalhavam sozinhas, comandadas por dois jovens operadores, de imaculadas batas brancas, que digitavam descontraidamente números em dois computadores situados no início de cada uma das cadeias. Disse-nos o anfitrião que ali estava o futuro. Para além da supressão de mão-de-obra, estávamos perante uma forma de trabalho que não cometia erros de apreciação, que para além de produzir peças à medida e completamente idênticas, ainda calculava o melhor aproveitamento dos materiais. Como disse, percebi então, pela primeira vez, como o radioso futuro se preparava para nos tramar.

Dali saído, em cuidadoso relatório, chamava a atenção para o facto de não podermos deixar de nos actualizarmos e de como era urgente formar os trabalhadores especializados em semelhantes aparelhos para novos modos de produção. Além disso, do ponto de vista das pessoas, seria necessário determinar atempadamente o destino a dar aos trabalhadores restantes. Escusado será dizer que as minhas preocupações, tanto técnicas como sociais, caíram em saco roto. Por isso e outras mais coisas, a empresa foi deixando de ser grande e, como Nova no firmamento, explodiu gloriosamente extinguindo-se sem remédio.

A meio dos anos noventa levou-me o destino e a profissão para a China e Macau. A firma lusitana tinha sociedades com várias empresas chinesas, uma delas situada na região de Cantão. Num tempo morto de uma das minhas deslocações passeava-me pela zona comercial de uma, para os chineses, pequena cidade dessa região, quando vi um belo fato de bombazina verde que me cantou aos olhos. Entro na loja e por quinze contos comprei o fato completo, inclusive com um colete que nunca vesti. Passados uns dois meses, numa das viagens regulares que fazia à Sede da empresa em Lisboa, andando na Baixa, vi numa montra um casaco semelhante ao do fato que comprara. Curioso perguntei o preço. Quarenta e cinco contos! Só o casaco, retorqui. Sim, só o casaco! Pela segunda vez percebi o quanto estávamos tramados, com um futuro muitíssimo complicado a aproximar-se à revelia das nossas preocupações. Desta vez, porém, não disse nada a ninguém, porque de cassandrices já me chegava. Mas sabia, de fonte segura, que o patau nos cairia em cima sem delongas ou benevolências.

Esta gente que nos governa nunca quis, conseguiu ou pretendeu ver, ouvir ou perceber o que o mundo nos guardava. Provavelmente distraídos, certamente preocupados com o seu futuro próprio descuraram o que havia para fazer. Ao trabalho que lhes competia pelos cargos que exercem e a que por vontade própria concorreram, preferiram os faustos de uma emergência social aparente, sustentada sobre quase nada, não se importando com o que aos outros acontecesse desde que eles ficassem ou parecesse que ficavam bem. Por isso fomos apanhados sem defesa pelas crises que se amontoam e soam como trombetas de mudanças próximas, provavelmente cataclísmicas. Somo um povo manso até à inércia mas os rompantes violentos não nos são desconhecidos. Apenas vamos enchendo calados até ao desgarrado grito que já nada tem de racional, antes sendo vaga que arrasa tudo sem discernimento. Com as opressoras medidas que estão a ser tomadas, na crueldade de quem não pensa nos dramas que tais decisões comportam, quem se admira que por aqui, breve, rebentem inauditas violências nascidas no remorder de injustiças e danos causados por desprendidos mandadores?

Não quero de novo ser Cassandra, mas lá que os ventos sensivelmente se acumulam não tenho dúvidas. Que quem os pode amainar se precate e aplaque a prepotente pressão, porque os tempos ao tempo seguirão e desta vez pode ser que a antiquíssima prece sejam mudada e as gentes digam: Pai, nunca tu, nem ninguém, os ouse perdoar, porque eles sabem muito bem o que fazem!


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

outubro 12, 2010

Que título darei a isto?




Sento-me ao correr dos ventos que fazem a tremulina dos rios e desespero com a ausência de angústia. Deveria, neste momento em que o devaneio se perde pelas áleas da escrita, arrepelar cabelos, dar pancadas no peito e, de olhos postos nos céus, desgarrar em grito desesperado: o que vai ser de nós?!

Oiço os nossos maiores, em funda preocupação interrogarem os tempos, tecerem rotas e caminhos por onde alguma segurança se insinue e recordo os olhares receosos, ou desesperados, de quem embate em inultrapassável parede. Acresce-me a culpa de já não conseguir preocupar-me com as suas preocupações. Contra minha vontade sinto-me distanciado, alheio, apenas me assolando os lábios do espírito um friso de indiferença traduzido num descabelado: e depois?

Se a graça da religiosidade me enfeitasse poderia justificar o meu estado de alma com o ensinamento bíblico de que não deve o homem preocupar-se excessivamente com as coisas terrenas porque nem uma pena cai de uma ave, nem um cabelo de qualquer cabeça, sem que tais acontecimentos não tenham sido previstos e queridos pelo senhor dos céus. Mas não tenho essa desculpa e não descubro como encarar os acontecimentos com o devido estado de preocupação e seriedade com que os mesmos deverão ser enfrentados. Sinto-me, por isso, quase como um pária ou, querendo ser mais simpático para mim, como um monge budista olhando o tremular dos rios deixando a corrente levar os pensamentos até à extrema intensidade do alheamento.

É assim que me sinto. É assim que me contemplo. É assim que estou!

E no entanto, sexta-feira, dia 15, já tão depois de depois de amanhã, o governo entregará na Assembleia da República o Orçamento Geral do Estado no qual, dizem, repousa o perigo de mil caixas de Pandora. Da sua aprovação, parece, dependerão o Sol e a Chuva, o Outono e o Verão, a felicidade ou o estéril tempo da derrota. Com ele, diz-se, continuará o tempo com os sobressaltos que lhe cabe; sem ele a derrocada final de um indescritível Armagedão tombará, insano, sobre as nossas culpadas cabeças. Entre o descrédito e o arrependimento serão os homens colocados e julgados. Enquanto o terror se insinua no verbo dos arautos eu, estranhamente, continuo discreto e indiferente.

Nem mesmo a terrível ameaça da chegada do Fundo Monetário Internacional (FMI) me acabrunha. Estou insensível, talvez indiferente, certamente anestesiado. Tal catatonismo invadiu-me por excesso de preocupação. No início da crise procurei, por todos os meios compreende-la, dominá-la, ultrapassá-la e, piamente acreditei que do grande fragor alguma coisa de novo aprenderia a humanidade. Porém, quanto mais se agravavam os actos mais eu via que se agraciavam os culpados e se castigavam as vítimas. Percebi que por misteriosos jogos de espelhos as imagens chegavam virtuais, invertidas, transmutadas. Aos industriais que arruinavam os seus países, por deslocalizações gananciosas das suas indústrias e investimentos para zonas onde a exploração da miséria lhe garantissem maiores ganhos, eram entregues os poderes para resolverem, a favor dos povos, estas movimentações. Eles arreganhavam a taxa e serviam-se destes favores, desculpando-se com hipócritas contrições, para incrementarem o fluxo dos seus roubos da prosperidade dos outros, espalhando miséria ao engordarem enormemente os seus cabedais. Embriagaram, na mentira do podes ter tudo assim o crédito de alumie, os incautos pagantes os quais, agora, por mais que queiram, sem depósitos nem emprego, não têm, não pagam, não podem, mas conservam as obrigações e, perante os financeiros, ficam com a cerviz mais dobrada que o habitual. Para garantir o fluxo financeiro os governos retiraram o que ao povo ainda restava e entregaram aos génios das finanças para que eles pudessem continuar, sem qualquer emenda, antes mais forte e intencional, o jogo especulativo em que poucos enriquecem fazendo os muito cada vez mais pobres e carregando-os, cada vez mais, de miséria e complexos de culpas.

Se assim vai o mundo, pior vai o país. Pequeno e devedor tem, na maioria da sua classe política, um grupo de predadores somente preocupados que o seu prato de lentilhas seja abundante e suculento, ainda que para isso fiquem os pratos dos outros encardidos de míngua. Entregaram, venderam, puseram à disposição dos seus patrões o tudo desta Nação esperando a migalha tombada da mesa dos senhores. Dizem agora aterrados, que sem eles o mundo desabará, o Sol não percorrerá a sua rotas e, continuando a parafrasear Brecht, o trigo não saberia como crescer. Outros, com o mesmo fito, mas contrários nos seus interesses dizem o mesmo acrescentando, no entanto, que só eles poderão levar a nau a bom porto; que aqueles que estão no poder são incapazes e irresolutos, que só eles, usando e abusando das mesmas medidas, serão capazes do bom conseguimento das coisas. Ambos ameaçam o caos se os não apoiarmos e, papão dos papões, virão os estrangeiros decidir o caminho do País.

Morre-se de ridículo nas praias de Portugal. Como se não fossem já os estrangeiros a decidir do nosso destino. Como se as medidas preconizadas não fossem já decididas por estranhos. Como se eles não fossem os intermediários dos países poderosos da Europa pouco comunitária. Vivendo na ficção do seu poder querem-nos cúmplices da sua manutenção ou conquista. Capatazes de forças que não dominam babujam os restos e pensam-se convidados para o banquete. Só por trágico não dá vontade de rir. Que diferença faz para nós ser o Governo, o FMI ou a Oposição a aplicarem garrotes aos feridos, se a técnica, intenção e resultados são os mesmos? Passando o orçamento a nossa vida melhora? Com as medidas que preconiza certamente não e, não será forte adivinhação preconizar que virá ainda a ser pior. Então que nos importa quem ministra o veneno? Deixem-nos com as suas guerras de alecrim e manjerona e percebamos, finalmente, que neste paradigma não há lugar para o bem público. Que se esganem as feras entre si. Deixemos olimpicamente que se destrocem pelo osso que lhes é atirado e pensemos seriamente naquilo que verdadeiramente interessa.

É por isso que, no momento me sento ao correr dos ventos que fazem a tremulina dos rios e nem sequer já desespero com a ausência de angústia.

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

outubro 01, 2010

Parabéns! Estamos 20 % mais pobres.




Uma vez mais o inefável engenheiro veio dar mostras públicas do infinito amor com que brinda os seus concidadãos. Pensam que ele escolheu o caminho fácil de criar postos de trabalho, melhorar o nível de vida, de saúde ou de educação cá do pessoal? Claro que não! Isso seria um percurso demasiado acessível ao estrénuo respeito e amor que o seu coração (agora, vejam bem, apertado por tais medidas) recusaria percorrer. Sim, porque ele, no seu infinito saber, vê mais longe que nós e percebe aquilo que nem nos passa pela cabeça.

Num dos seus cursos de domingo aprendeu, para felicidade de todos nós, que nada vale ao homem conquistar toda a glória do mundo se perder a sua alma. Espírito nobre e desafecto das coisas do mundo, tremeu, na sua imaginação, ao vislumbrar a sofrida eternidade deste povo pouco esclarecido e tão entretido com pequeníssimas preocupações terrenas tais como arranjar trabalho, garantir-se a si e aos seus as refeições diárias, pagar contas de serviços, enfim, mesquinhamente, sem olhos de grandeza futura, apenas sobreviver. Decidido a garantir-nos no advir um lugar na eternidade do Senhor, bem postados à sua direita, matutou sobre os pecados cardiais e sobre as virtudes teologais e, tal Santo Agostinho converso, resolveu sacrificar-se por nós todos, apontando medidas de bom e útil sofrimento, para escarmento da alma, pois é bem sabido que é mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha, que um rico entrar no Reino do Céu.

Para tanto, com o imo em sangue, mas fortalecido, pela graça do Senhor e pela bondade das suas intenções, informou o povo, de alguns sacrifícios, pequeníssimos tendo em conta o antevisto benefício, a que iria ser sujeito com vista à salvação da sua alma de molde a podermos, todos sem rebuço, comungar da felicidade eterna prometida a todos os deserdados e pobres de espírito. Assim, decidiu, amorosamente, empobrecer-nos cerca de vinte por cento.

Alto aí, dizem-me alguns espíritos despertos. O santo só disse que iria cortar uma média de 5 por cento no vencimento dos funcionários públicos. E, acrescentam, toda a gente sabe que eles são uns sibaritas e uns fariseus. Não, esclareço eu, o que ele não quis foi assustar-nos com a verdadeira dimensão do sacrifício. Como sabem ele tem um íntimo solidário e generoso e sabe bem como os vulgares mortais estão agarrados aos bens materiais. Por isso decidiu, com suprema inteligência e bondade, pôr-nos o comprimido disfarçado no doce para que o tomemos sem refilar com o seu amargor. Preocupação de pai amantíssimo, acrescento, que sabe que o filho tem de tomar o remédio amargo para a sua salvação, mas tudo faz para que o ordálio lhe seja mais leve. Abençoado seja!

Deste modo, ingénuos como sabe que somos, serviu-nos, para nosso alívio, as fezes em pequenos tragos sumativos. Acompanhem-me, por favor, neste raciocínio que poderá abrir-vos os olhos para a grandeza espiritual do nosso líder sagrado. Distribuindo parcelas por PECS e por medidas orçamentais informou-nos, com inusitada benevolência, de que iríamos ser aliviados, através do IVA de três por cento do nosso pecúlio. Acrescentando os cinco por cento – em média – de corte de salários (sei que é na função pública mas tenho fortes esperanças que o sector privado, a bem da temperança, não deixe de seguir tão nobre gesto) o que perfaz oito por cento. O aumento de desconto para a segurança social será de uns míseros um por cento e lá ficamos com um resultado de nove por cento. Considerando que, pelo menos durante quatro anos o distinto cavalheiro nos irá aliviar do pesado fardo dos aumentos e podendo considerar uma inflação média no total de oito por cento, calculamos que os dezassete por cento seja um número plausível. Os restantes três por cento? Penso que serão pouco para fazer face ao aumento de IRS pelo corte nas deduções, pelo custo dos cortes em educação, actos médicos e medicamentos. Lá temos os nossos vinte por cento de sacrifícios que, tendo em conta que a Igreja só pedia a dízima, é o dobro do que o Senhor exigia. Têm pois alguma dúvida que pagando mais o nosso sacrifício não será garantia de um melhor lugar no paraíso?

Por isso eu agradeço ao senhor engenheiro e ao senhor doutor das finanças o favor que me fazem e exulto por saber que estou a garantir, por um preço tão baixo, a eterna felicidade. Tenho é muita pena dos ricos que escapem a estas medidas porque eles viverão no sofrimento e na danação eterna. Espero apenas que o Senhor e o senhor engenheiro lhes iluminem os dias e façam o milagre de garantir o nascimento, todos os dias, de legiões de pobres em que eles possam exercer a sua caridade proporcionado-lhes o seguro viático para mansão celeste.

A despropósito! Apetece-me ouvir a Canção de Madrugar do Hugo Maia de Loureiro. Vão ao YouTube e onde se canta amor ponha-se liberdade, justiça ou equidade e perceberão o que o Ary queria dizer e o que estamos a precisar nesta era de tamanha religiosidade.



Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt