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abril 30, 2007

elogio dos estúpidos (poema)

I

vejo-os passar no seu ar alheado
parecem-me felizes

meus olhos longos e doces de trabalhar mágoas
recordam paisagens onde habitava a tua companhia

era nesse tempo suficiente e completo
tomava por verdade o que os olhos vêem
e a razão do momento pelo momento da razão

II

como é pesada a vida quando tudo é desconhecido
e nada do que temos é suficiente
e as saudades nos assaltam até às lágrimas
ficando agarrados à possível dignidade
noção vaga inoportuna irreal indemonstrável mas
de tal forma necessária que nos desgarra em contínuas escolhas

atacados da mansa loucura da solidão
procuramos o rosto amigo o peito amante
que venha reaquecer o nosso sol

ninguém entende quanto estamos sós
ninguém entende como esta injustiça universal
cai sobre o fogo sagrado que ardendo em nós
nos faz maiores mais vulneráveis solitários e nocturnos

III

há nesta obsessão da noite neste sentimento de falta
um resto de desejo da tua presença que não quero

tudo está de rastos

terramoto interior que nada poupou
deixou-me sobrevivente de mim
violento e teimoso de pé sobre os
escombros a reconstruir

por isso escrevo para ti estas palavras que não lerás
compor-te-ei ainda versos e não serão teus
habitar-te-ei das minhas palavras fazendo-te bela e
amante como nunca conseguiste e forte da força que não possuis

no entanto tudo isto é insubstancial
a tua imagem descrita nunca
poderá ser molhada pela chuva de outono
ou beijada nas horas em que o fogo anima o coração

dentro de mim é que serás real e estrangeira
dentro de mim continuarei a procurar-te e a banir-te
por plainos longos e monótonos onde apenas
um estático ribeiro chora


IV

o que dizer mais de mim
coração magoado que espera

ó céus que coisa grande é a dor que conseguimos
que pena tenho de nós
não só de mim que sou náufrago
mas também de quem afundou o meu navio

é que tu canhoneira dos meus hábitos
és algoz e vítima deste jogo cósmico que ninguém criou
mas onde todos somos à uma caça e caçador
e nada nos é poupado e a nada somos estranhos

V

é isso sou um erro crasso
apareci na vida pela porta errada
compareci no mundo quando não era a minha vez

p'ró raio que as parta as filosofias requintadas
quero ser estúpido e viver o dia-a-dia cumprindo
a leve obrigação de estar vivo somente porque como
ou ejaculo

quem me dera que eu fosse estúpido
e conhecesse a vida através dos programas de televisão
e pudesse ser feliz por ser o melhor dançarino da "boite"
estar bem visto no emprego
cumprir ordens sem as discutir
ter uma mulher certa matronal estúpida
distantemente carinhosa e de horizontes limitados
à ancestralidade da família

quem me dera puder ser feliz assim

ser o perfeito pai de família dominador
circunspecto que ao domingo sai apascentando as filhas
que ocupa os sábados a dar lustro ao carro
e que tem encontros clandestinos com uma colega
e pensam por isso ter descoberto os limites da aventura
a fronteira onde os homens assumem a divindade
e acabam molhados e langorosos numa ressaca de remorsos
citadina e poluída dizendo foi tão bom e mentindo
por dentro como se mente por fora ímpios enganadores
da morte com máscaras de cartão

quem me dera ser tudo isto que não sou

VI

em vez disso procuro conhecer
as razões de sentir tudo íntima e analiticamente
para com este conhecimento fazer
coisa nenhuma

por isso a mim tudo me dói mais tudo tem a crueza de ser aquilo que é
e não haver razões nem desculpas para ser outra coisa

sim eu que não enjeito culpas
nem atiro às costas do destino
as causas dos meus efeitos
sei que seria mais feliz sendo estúpido

por isso é tão urgente fazer o elogio dos cretinos
daqueles a quem todas as coisas passam mais ao lado
ou reagem instintivamente com violência ou crueldade
e ficam limpos e nada lhes acerta com jeito de ficar
porque se estão nas tintas para todas as culturas
vivendo tão naturalmente como uma glândula
segrega os seu humores

VII

após este elogio aos estúpidos
descarreguei a minha bílis contra
esta ocasião de vida

sinto-me mais aliviado
um pouco mais reconciliado
quase agradecido à pequenez da memória
e à doçura das ondas contornando a praia

mas faço um esforço de vontade
quebro o adormecimento que me embala
e a realidade esmurra-me nas ventas

porque na verdade estou fundamentalmente só
porque na verdade me sinto defraudado
e a vida que eu vivo não é melhor que a dos estúpidos
e aquilo que eu sinto não justifica coisa nenhuma
e o esquecimento que procuro é igual ao de toda a gente

por isso num pôr-de-sol repleto de cansaços
acabo o poema deixo cair os braços

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