Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 2.5 Portugal License.

abril 17, 2007

QUE ALEXANDRE NÃO ME TAPE O SOL

Não há ainda muitos dias, tomando consciência de quantos quadros do Kira tinha em casa e de como alguns marcavam pontos importantes da minha vida, decidi iniciar no meu blogue, uns “posts” aliados a cada um desses quadros. Quando publiquei o primeiro (e por enquanto único) informei o Kira do facto e, no seu jeito irónico e corrosivo, ligando o blogue às publicações que, o mais regularmente possível, venho a fazer no Rostos, insinuou, primeiro que estaria a publicitar-me para candidato a Presidente da Câmara, mais tarde, emendando a mão, vendo a pobreza do que me destinava, lá se dignou considerar-me como previsível candidato a Primeiro-ministro.

Já não era mau de todo!

Mesmo assim, fiquei desiludido. Sempre pensei que, por um lado ele me estimasse mais, por outro me considerasse um ser tão excepcional – como, aliás, eu me considero a mim próprio e vá lá, também a ele – e me futurasse uma Presidência da Europa ou quiçá um Secretariado-Geral da ONU.

Isso é que me vinha a calhar e a ele também porque, sem nepotismo nem favoritismo ou qualquer grau de corrupção (!?), sempre lhe arranjaria um empregosito melhor. Então, é para isso que são os amigos, pois não é?

Visto que ele não me propõe para os cargos que o meu alto desígnio aponta e, sobretudo mereceria, venho proclamar, alto e bom som, que não estou disponível para nenhuma outra posição, ainda que digna e de relevo, em qualquer quadro político local, nacional ou internacional.

Postas as vírgulas nos sítios, avancemos para uma explicação, sumaria e anedoticamente antropológica, das razões em que me fundo para negar-me a tais e tantos aliciantes cargos de poder.

Correndo o risco de vir a ser exautorado e quem sabe mesmo apedrejado na via pública, afirmo que o poder não me interessa, porque, se existindo realmente não é uma mentira, tem razões de ser incontornáveis e faz sentir muito bem o seu peso sobre os viventes, já a sua génese assenta sobre uma fraude social que se vai repercutindo e estilizando aos longo dos tempos e conforme as sociedades crescem e se sofisticam.

Perante as vossas bocas abertas de espanto e o escandalizado ar que ostentam pela enormidade que do teclado me saiu vou tentar credibilizar a minha tese.

Supúnhamos que num tempo tão remoto que não havia história nem chefias, num determinado grupo humano, onde todos eram tão iguais quanto as diferenças pessoais o permitem, um individuo se destacava do grupo por ser quem mais caça conseguia apanhar. Olhando os mais altos interesses desse grupo, uma noite, reunidos à volta da fogueira, alguém sugeriu que o exímio caçador fosse dispensado de todos os outros trabalhos socialmente importantes para se dedicar só e apenas ao acto de caçar.

Sábia decisão. Sendo a vida difícil e frágil perante os perigos dos animais e da fome, estes caçadores recolectores, assegurando o trabalho exclusivo daquele perito, evitavam riscos de ferimento ou morte nos restantes e conseguiam a RMG (refeição mínima garantida).

Espanto da inteligência e racionalidade de que o homem é capaz.

Só que, o raio da vida tem destas coisas, o nosso caçador, gostou tanto do tratamento diferenciado que este estatuto lhe concedia, que já não lhe passava pela cabeça voltar às lides normais do grupo. No entanto, por envelhecimento ou falta de sorte, algumas caçadas começaram a ser menos produtivas e a escassez – que é má conselheira – levou a que algumas vozes dissonantes e isoladas pusessem em dúvida a bondade da solução até aí adoptada. Sentido este estado de alma o nosso caçador puxou do raciocínio e dando a volta ao bestunto, magicou que se conseguisse trazer para o seu lado os dois manos mais fortes do povoado talvez ganhasse algo com isso.

Vai daí, numa lauta comezaina a três, o caçador sussurrou aos Golias que se ficassem do seu lado e o ajudassem, com umas porradinhas, a calar os maldizentes teriam sempre uma melhor parte na distribuição dos alimentos, além de serem os seus melhores amigos com tudo o que isso poderia trazer de vantagens.

Os nossos Golias não eram primos do Einstein, mas não era estúpidos de todo. Aceitaram a incumbência, passaram a usar as peles de modo um pouco diferente dos restantes, amachucaram meia dúzia de cabeças e assim se formou a primeira força pública, a bem da população, autorizada ao uso legitimado da violência.

Esta situação durante algum tempo manteve serena a comunidade. Mas como mesmo no melhor dos mundos há sempre descontentes, houve quem não gostasse de ver o irmão sem dentes ou de cabeça rachada e iniciasse nova onda de protestos. O nosso caçador, mais esperto, ou com mais tempo para pensar, matutou consigo e disse: Bem, os Golias têm-me resolvido o problema. O pior é que o pessoal recalcitrante pode arranjar outros mais fortes ou em maior número e desancarem-me os esbirros. O melhor é pensar numa outra forma de, em conjunto com esta, tirar-lhes da cabeça a ideia de me porem de novo ao nível de toda a gente.

Conhecia o nosso caçador um grande patranhas que passava a vida a tentar enganar os outros vendendo-lhes ervas e decifrando sonhos e futuros a troco de um bife ou de um punhado de cereais bravios. Chamou-o e propôs-lhe que pusesse o seu talento a render a “favor do povo” e não com até aí, egoisticamente, só para ele. O nosso aldrabilhas, que não era nada parvo, percebeu que ou alinhava ou levava uma amarrotadela significativa dos dois Golias. Assim, considerou os ganhos e perdas e tornou-se o FOG (Feiticeiro Oficial do Grupo), com assento ao lado do CHECA (Chefe Caçador) e da FUSP (Força Unida de Segurança Pública). Revelando augúrios e significações legitimou, para sempre, o poder do caçador, como descendente directo – por isso bafejado com os talentos que lhes eram reconhecidos e só ele possuía – dos mais importantes antepassados do grupo. Criou rituais, obrigou a hábitos e normas e legitimou de forma absoluta e divina os inalienáveis direitos do Caçador e da sua descendência.

Com esta brevíssima história penso ter demonstrado porque é que não gosto do exercício do poder, da sua génese e considero ter ratificado a hipótese de todo o poder assentar, algures no passado, senão numa fraude, pelo menos numa rábula de consequências, por vezes, trágicas.

Desta forma, os meus heróis não são os poderosos, nem eu consigo perceber-me em lugares de tal poder. Antes prefiro, como Diógenes, olhar para o poderoso Alexandre Magno e dizer-lhe tão-somente que dele apenas queria que não lhe tapasse o Sol.




Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

Sem comentários: