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abril 07, 2007

Os meus quadros de Kyra

1 – O Peninha

O Kyra conheço-o desde o princípio dos tempos. Das corridas loucas pelas ruas de Évora, aos nossos primeiros amores, vividos com a força das coisas primordiais e irrepetíveis. Muito antes de se iniciar visivelmente na grande pintura que é a sua.

Acordo todos os dias a olhar para um belo quadro a que chamou “Os Noivos” e que está no meu quarto. É uma óptima maneira de enfrentar mais um dia que nunca se sabe como vai correr ou acabar. Mas não é desse quadro que vou falar no momento. Refiro-me a ele, porque hoje, ao levantar-me, olhando-o, tendo em conta outras obras suas que me acompanham em casa, vi, claramente, como cada um deles marca momentos importantes das nossas vivências. Decidi assim, ir, ao longo dos próximos tempos, com os vagares da meditação e do tempo disponível, fazendo um levantamento e dando testemunho deles e das suas circunstâncias.

Assim, o primeiro quadro, que não posso reproduzir aqui para o compartilhar convosco, como gostaria, porque nem sei se ele ainda existe, a que ele chamou “o grito” e eu, por circunstâncias que aduzirei denominei “o peninha”, nasceu em 1966.

Foi assim:

Vivia eu uma desesperada paixão correspondida pela minha musa mas contrariada pela família. Lembram-se do poema do Zeca:

Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rês
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive o diabo na mão(…)

Pois ele corresponde inteiramente à forma como a família da minha enamorada me via e me queria fazer sentir. Nesse tempo as diferenças sociais eram bem mais marcadas e marcantes que nos dias de hoje e a minha pretensão mais parecia heresia que coisa de gente com juízo. Mas a juventude é única e alimenta-se dos obstáculos e por isso o nosso namoro continuava afrontando ventos e marés.

Aproximava-se a data de aniversário da minha amada e eu queria dar-lhe uma prenda que a merecesse. Dinheiro não direi que não abundava porque isso era ser demasiado optimista. Na realidade quase não havia. Foi então que eu tive uma ideia fabulosa. Fui ter com o Kyra, então ainda o Gama, com o meu projecto: Eu comprava os materiais e ele pintar-me-ia um quadro para eu oferecer como prenda de aniversário.

Com a generosidade que o caracteriza anuiu imediatamente. Alguns dias antes do aniversário veio o Kyra com a tela – que se me lembro era um contraplacado trabalhado – e eu fiquei maravilhado. O quadro, de uma beleza cromática inexcedível na linha dos laranjas avermelhados, representava um vasto espaço onde a terra e o céu se confundiam, com uma única e mínima figura a perder-se na linha de horizonte onde os tons de laranja-céu e laranja-terra se uniam. Nessa figurinha quase a desaparecer, postada na convergência das linhas verticais e horizontais desse mundo ignoto, pressentia-se um desespero, uma angústia, uma solidão que fazia ouvir dolorosamente o grito irreprimível e reprimido que ameaçava soltar-se-lhe do peito. Nada, para o caso e o momento, poderia ser simbolicamente mais perfeito que essa obra.

Como a figurinha, parecendo esmagada pela forças cósmicas, resistia estoicamente e parecia ter, como um índio, uma pena na cabeça, eu chamei-lhe “o peninha” e assim passou a ser conhecido.

Que foi feito desse quadro? Não sei! Cruzaram-se tempos e guerras, mudaram-se perspectivas e nunca mais eu e ela festejámos, juntos, um aniversário. Mas para lá de tudo o que possa ter acontecido, mesmo que “o peninha” se tenha perdido nos naufrágios da vida, ele existe e estará sempre presente pendurado nas paredes dos meus sentimentos. E é e será para sempre o meu primeiro quadro do Kyra.

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