A minha mulher anda cinzentinha (3)
Após o meu pobre diagnóstico e a solidariedade demontrada no texto anterior, a minha mulher decidiu falar do seu cinzento. São suas as palavras que se seguem:
" Nestes dias de cinza em que de meu estado me acho incerta.
Sabias que os dias são novelos de cinza insidiosamente entretecidos?
A contraluz, a trama vai prosseguindo silenciosa e de nada te apercebes. Porém, a urdidura está pronta e, só então, constatas que o branco, antes luminoso, desponta mais escuro! Distraídas, as mãos colhem esse cinza. As mãos! Não tu, que tens os olhos presos à cor que, insidiosa, integrou a paleta dos teus dias. Vê-la-ás com nitidez até lhe sentires o peso.
Então, as mãos dir-te-ão que soçobras.
Então, curvarás o rosto para o peito meditativo.
Então, de olhos toldados, procurarás pesar o cinza que te habita, se medida houver para a insustentabilidade.
Se a não tiveres, subirás ao pino do dia, buscarás a inclemência da luz e, ao ponto máximo do branco, colarás as mãos plenas de mágoa. Esperarás.
O tempo forja o tempo. É na paciência que se tece a espessura da cor. Atenta e silenciosa, esperarás. Só assim sentirás o corpo vergar-se. Quando a dor te envolver, o peso do cinza ser-te-á entregue. Toma-o e desce ao passeio que corre ao lado do mar. Que estará não verde – como gostas – mas branco cinza com pinceladas de azul teimoso. Não te prendas ao azul. Guarda os olhos para o branco. Não o alvo! o sujo, o que irás sentir nas mãos, o que se empurrará para o centro de ti.
Dizia-te eu que o cinza é feito de novelos. Lembro-to porque recusas o branco sujo em que te moves. Lembro-to, neste instante, em que trémula te inebrias de azul. É certo que a atenção te foge pois, embora o recuses, já te sentes presa ao casulo cinzento, qual marioneta puxada pela cor. Mas, atenta naquilo que sabes: o azul não é o teu destino.
Também te falei do tempo espesso. Desse que é a massa física do cinza.
Sabes que o deves ver, e sabes mais, que só o peso que te esmaga te trará a vidência. Então, penetrarás na cor de que foges. Olharás o mar vazio - nele não estão as alucinadas notas de azul nem o verde de Chagall, há pouco sonhado.. –, e cega, de pernas recusando-te firmeza, colherás uma a uma todas as gotas de cinza do oceano imenso. Colocá-las-ás no teu regaço. Depois, deitada na praia fecharás os olhos. Sei que temes nunca mais ver o azul e que procuras uma nota dele no recôndito de ti. É tarde. Já te integraste na trama perfeita do cinza. Esta sapiência não é absoluta, nem definitiva posto que ainda sonhas ondas suaves e azuis, bordadas de branco. É certo que este intervalo pouco durará. Daqui a um minuto, abrirás os olhos.
Decidida! Curvada! Fixarás novamente o aço marinho. Descerás um pouco. E na linha em que tu e a água se tocam, permanecerás. Abrirás as mãos em concha até que molhadas pesem todo o cinza que neste mar existe. Erguerás as mãos e beberás o aço desta água acre e insustentável. Podes com segurança pesá-lo. Em ti está. Inspira e sente-o na marcha, a que o corpo e a mente se recusam.
Andarás pela curva da enseada, sentindo os passos sepultarem-se na areia. Ficarás prisioneira do teu cinzento sofrimento. E, nesse exacto instante, tendo consciência da inutilidade das asas («asas que um anjo levou» - ah, o eco de Garrett chegando), rasando a terra molhada, verás erguer-se diante de ti a beleza estonteante e inalcançável do azul. E a dor galopante dos dias de hoje invadir-te-á!"
Fernanda R. Afonso
1 comentário:
Caro Dam,
Julgo que pensou que o texto é da autoria do Carlos. Mas não o é! Fui, eu, mulher dele, quem o escreveu a propósito destes cinzentos dias que fazem nascer galopantes dores. Pois é! Professora num país a esbroar-se é por demais! Agradeço o elogio. Embora dirigido ao Carlos, colho-o para mim.
Fernanda Afonso
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