(h) a via romântica
E a Maria do Brás que ficou sempre menina
Dentro de mim em Águeda há vinte anos.
Correio, O Canto e as armas, Manuel Alegre
(h) a via romântica
o amor romântico é uma inovação
tardia da civilização ocidental
I - meditação de inês
em janeiro de 1355
nunca desconfiei que o peso do tempo caísse
como vento no local da voz
olho o meu corpo
investigo os passos do silêncio
crescendo na planura do vestido
através das águas sobe o murmúrio dos prados
e sobre o nó do corpo fitam-se
os limites da crisálida
acode-me o instante transparente de todos os caminhos
II - início dos anos 60
em évora
nasceu em 1944
de pai bêbedo e desempregado crónico
a mãe
que nascera morta
continuou a morrer
até que muito nova concretizou
definitivamente
o seu estado
cresceu solto e descalço
entre janeiro e agosto saltavam-lhe
os pés
no fogo aberto das pedras
quando fez 14 anos foi dar
serventia a pedreiros e ficou
tal como o trabalho
duro e rapace
por vezes
no largo de s. mamede provocava a zanga
e batia nos estudantes mais fracos
era a raiva dirigida ao acaso
de quem não percebe a coacção
das regras sociais
nele
nada suscitava a hipótese
de um amor romântico
III - fala de pedro
e do futuro
é na pedra que preservarás a máscara
arcadas e volutas de vento uivarão a garganta
e nos olhos trarás choros de punhais
"que amor mate os matadores
na justiça dos silêncios sepulcrais"
cruel te chamarão por teu serviço
provocar a dor e o dia em que teu dia ressurgir
seja o de ouvir tremenda a tua voz
"é na pedra que pedro pensará a morte
e que amor mate os matadores
na justiça dos silêncios sepulcrais"
IV - continuação da narrativa
em évora
também ela se apaixonou por ele
pomba e gavião
voando
escandalosamente juntos
pessoas
certamente bem-intencionadas
levaram o recado ao pai
acelerando mais ainda a roda da paixão
negou-lhe então a cidade o seu abrigo
voara mais alto que a sua condição
V - de novo medita inês
em 1355
sei que em algum dia e por alguma coisa fui
e sempre d'esse ser me investi
no apartar das águas que sem nome
trazem o pássaro de vento e neve
onde se obscurece tudo
quanto se poderia abrir a oriente
no exercício de morte que soletro
fronteira proibida há que cumpri-la com rigor
e ser precisa nos gestos que ao tempo
outro tempo seguirá
VI - rápida mudança de évora
para lisboa
ela acabou por casar com um
engenheiro agrónomo que foi tratar
das propriedades do pai e montou casa
em lisboa
ele acreditando ainda que o amor era possível
foi-lhe na esteira e um dia
encontrou-a na baixa com algumas
novas amizades
ela fez que o não viu
VII - pedro diz
eu hei-de cantar sob os choupais
uma outra lua que agonia não mereça
em cada pedra selarei a flor de um mosteiro
feito de fuga e arco
quem se atreverá a abater o vulto que sustento
enquanto a vida vai
a ti meu pai lançarei as vísceras de todos
quantos não convenceram choros e armado
por quanto disse e vivo
abro a lura onde o lobo se constrói
eu matarei um dia
já que matar-se não pôde a minha voz
VIII - complemento da passagem
por isso ao olhar para si
compreendeu as margens
e viu
que de seu braço só partiam rios
de separar
então
em 7 de janeiro de 1967
612 anos precisos após a morte
de inês de castro
o meu amigo sentou-se no
banco do hospital de s. josé
e
por desesperado amor
assassinou-se
se ele se chamasse pedro
estaria paga a morte de inês
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