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novembro 18, 2005

neutral-neutrão (poema)

Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero
.

Os dois sonetos de amor de Ulisses, Praça da Canção, Manuel Alegre






I

sob o sobrolho da paisagem
a sombra do campo das anémonas
habita
a súbita tristeza das oliveiras
nos espaços do suor
nas ausências a partir dos hábitos
onde alquímico me ressuscito e transconheço

está por inventar a água
por dentro das cidades

II

neste tempo somam-se as antíteses

os profetas das novas divindades
dormem nos mundos luminosos
anónimos inextinguíveis como
estas sociedades da fartura
onde cada vez mais temos
um pouco de tudo a menos

seguramente desaprendemos
a forma de alçar voo
quando se espera o lume da invenção
e morremos esmagados à sombra
das novas catedrais
e sempre mais rotos e compatíveis
somos mais consumo que satisfação
mais imagem que real

somos
o sumo do consumo social
ou
mais ou menos um
na rota da neura catalogável e consumível
conforme o esgotamento nervoso do stock
a propaganda da pastilha
descoberta do mais curto caminho
para o marítimo reino das solicitações intempestivas

III

chama-se solitude à marcha para a divindade
onda que não molha carril parado
que une o sexo dos campos
ao umbigo das cidades

é preciso que a onda se encontre com a terra
para a vaga ter sentido e ser fusão
velocidade aumentada até à fuga
navalha virada contra o vento
misteriosa irmã do apagar de luzes
contra-espera de mães acenando sóis

por essas manhãs nocturnas
balançavam fantasmas provisórios
em ecos de aprendizagem da vida
nas formas absolutas e mágicas
em que nada ainda foi posto em causa
que tudo é pretexto para a maravilha
de compreender todas as coisas
intuitiva e desregradamente
como fome pura e sensual

IV

o mundo está atravancado por pessoas que são coisas
e receiam ser pessoas

nem que seja numa carta a receber por estes dias
dizendo das saudades que me trazes
de como te espero em cada primavera
impercebendo quotidianamente a diferença
entre o asfalto e o sangue dos grilos
mártires esmagados por convicções

nossa senhora dos aviões nacionais
proteja as empresas com capital do estado
jesus cristo redentor vele pelos impérios privados
e ponha um bom gestor no papado
são marx do capital nos salve dos leninistas
e que o tio sam o magnífico retire da cartola
um céu azul e vermelho com milionários e vedetas
e aumente a venda dos bebés proveta e
deixe os homens aspirarem ao grande trombo nuclear
à maravilhosa explosão que nos irá redimir
por todos os séculos dos séculos neutrão

V

uma hora
uma hora após
uma hora após não havia nada
uma hora após não havia nada para dizer
nem boca para falar ou mal-estar a sentir
ou vestígios de confrontação
nem espaço onde ficar ou mesmo solidão

havia só o espaço sem fronteiras
da última das bebedeiras

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