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outubro 27, 2005

A minha mulher anda cinzentinha

Duvidar e agir, agir e perguntar, eis o meu lema. Na vida e na escrita.

Duvidar e Agir, Arte de Marear, Manuel Alegre





Ando a ficar basto desconfortável. Por causa da cor da minha mulher.
Eu conto. Sempre foi radiosa e brilhante. Inteligente e activa não parava um momento. Gostava do seu trabalho e entregava-se a ele com devoção diária e sem ligar a tempos nem horários.

Achava que mais que uma profissão tinha uma missão. Por isso preteriu propostas de emprego mais bem remuneradas e aparentemente mais prestigiosas. Mas não! Era aquilo que ela queria e nada mais a motivava.

Por vezes, pensava eu, e ainda penso, era de mais! No meu materialismo rasteiro não compreendia a sua entrega total a um trabalho tão mal pago e com tantas e tantas horas doadas, nem sequer reconhecidas como tal. Mas ela não se importava, continuava a pensar que o seu trabalho era importante e dele dependeria, de alguma forma, o futuro de todos nós.

Todos os anos fazíamos projectos de fins-de-semana magníficos. Todos os anos, em quase todos os fins de semana, adiávamos para o fim-de-semana seguinte o magnífico projecto, porque um trabalho, uma pesquisa, uma actualização ou uma proposta nova – entre tantas outras coisas – vinha impossibilitar a realização do programa desejado.

Então projectava-se uma mais comezinha ida ao cinema, a um concerto, ao teatro e… não íamos porque algo se tinha complicado e era preciso mais tempo, mais estudo, mais trabalho.

E o dinheiro gasto em livros para actualização? E o tempo para pesquisar em bibliotecas e livrarias?

Incontáveis, meus senhores! Tudo a suas expensas em horas e dinheiros!!...

Mas, apesar disso, a minha mulher continuava luminosa e activa a destilar espírito de missão.

Só que, há uns tempos para trás, começou a acinzentar. Arrasta-se, parece deprimida e olha para as coisas, que tanto a entusiasmaram, com um “olhar distanciado” entre o baço e o displicente.

Cheio de desespero e de frustração perguntei-lhe se a podia ajudar? De que sofria? Respondeu-me, desalentadamente, que a não poderia auxiliar e pensava mesmo que ninguém, a curto prazo, o poderia fazer.

Sofre, confessou-me com alguma vergonha, de ser professora do ensino secundário!

Dei-lhe toda a razão! Este mal, nestes tempos, não tem mesmo remédio nenhum.

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro Carlos,

aqui está alguém que sofre do mesmo mal que a sua mulher.Até já entrei em depressão com tanta injustiça para quem, durante trinta anos investiu esforços, tempo, dinheiro, sonhos, esperanças ... eu sei lá! Era e ainda sou uma boa profissional. Mas eles não merecem! Estou completamente desmoralizada!Puseram o país de pé descalço, gastaram «à grande e à francesa», e agora mandam-nos pagar a nós. E para desviar a atenção da sua incompetência total e descarada, lançam o olhar da opinião pública sobre nós. É certo que algumas coisas estão mal,como em todas as profissões também existem entre nós maus profissionais. Mas quem já nasceu torto nunca se endireita!
Não é deste modo que vão conseguir um melhor ensino. Aliás esta reforma, mascarada de modernidade e eficiência, não tem esses objectivos. As pessoas que a teceram não sabem o que é a prática pedagógica nas escolas, a realidade. Tenho em casa um escritório bem apetrechado: boa biblioteca e tecnologia. Que fico a fazer na escola, onde não tenho nada disto? A olhar para as paredes? A tagarelar com os colegas? Ai meu Deus, estava tão bem em casa a produzir... que tempo precioso desperdiçado! Nunca mais me vou poder dedicar e preparar aulas como fazia, porque na escola não tenho os meios.É uma vergonha o que se está a passar. E a Casa Pia? Já ninguém fala. Não há culpados! E as férias judiciais. Fizeram greve e já todos se calaram! E nós? E nós? Nós é que estamos a pagar por todos. Até um dia... até um dia... Olhem para Paris. Quem sabe Lisboa não segue o exemplo qualquer dia. Tenhamos esperança, porque esta ainda não morreu. As melhoras para a sua mulher.
Antonieta