Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-Noncommercial-No Derivative Works 2.5 Portugal License.

maio 17, 2007

Uma flor para Helena

Ilustração: Pedro Correia


















O telefone ribombou por volta das duas da manhã. Caí do sono, como da cama, numa perturbação redonda. Presságios de coisa má correram ao meu encontro. Eu galguei, aflito, para o telefone.

-Olá, estás bom? O raio de uma voz de quem não precisa de dormir esvaía-se pelo auscultador leve e risonha.

-Está, quem fala?

- Então não me reconheces? Sou o “Povo”, pá!

Não, não fiquem a pensar que estou aqui a tramar alguma figura de estilo com esta coisa de ter o “Povo” do outro lado da linha num telefone que ainda por cima, por portátil, não tem linha nenhuma. Era mesmo o “Povo” e queria falar comigo. Às duas da manhã! Este “Povo” nunca teve modos. Foi sempre impetuoso e inconveniente, quase a roçar o malcriado e pelos vistos continua.

Reconheci, através de anos de distância, a voz que me falava. Vieram-me à memória o fim dos anos sessenta, as cargas da polícia na universidade, a libertação luminosa de Abril e o meu companheiro constante dessas eras e lutas.

Desenrolando a mente passo a explicar-vos os porquês do nome deste amigo. Militávamos então, furiosamente e em grupos diferentes, naquilo que, acintosamente chamavam extrema-esquerda e a que nós preferíamos chamar esquerda revolucionária. Ele estava num qualquer dos muitos partidos ML (marxistas-leninistas) que apregoavam trazer a verdade, escondida em livrinhos coloridos, pronta a ser libertada pelo toque mágico dos revolucionários (nós) contra os burgueses (por acaso os nossos pais e tios) para total e completa libertação do proletariado. Eu não vou dizer para onde se escoava a minha sanha libertária porque trabalhávamos em rede e tínhamos pacto de silêncio (que ainda mantenho). No entanto todos sabíamos, embora nunca lhe tivéssemos perguntado, o que o proletariado precisava e queria. Estão a ver a coisa?

O cognome do meu amigo, como os meus distintos leitores já se aperceberam, era o “Povo”. Resultara tal da sua forma única, pronta e arguta de resolver todas as questões ou contradições com o mote de “ o “Povo” tem sempre razão”. E pronto! Só não gostava que lhe falassem em eleições. Isso era o Diabo! Traía-se o proletário com semelhante dislate. Só a Revolução era resposta suficiente para os males sociais e a população esperava apenas que, de entre nós, o Partido e o seu Mentor se revelassem, numa palavra de ordem arrasadora e por milénios viessem instaurar a república perfeita.

- Eh! Pá! Disse eu. Pregaste-me um valente susto. Isso são horas de telefonar a alguém?

- Pois, retorquiu, pensava encontra-te acordado. Tenho de fazer-te uma confissão e não podia esperar.

O raio do homem deve estar parvo. Acordar-me assim para fazer uma confissão. Bolas, não sou padre nem polícia e o que quero mesmo é acabar o meu soninho.

-Espera…espera, resfolegou aflito. Não desligues. Acabei de ler no teu blogue que apoiavas a Helena Roseta e é sobre isso que te quero falar…

Esta é boa. Ainda vai dar-me uma desanda depois de me ter acordado a desoras. Só mesmo do “Povo” é que poderia vir uma destas. O tipo sempre tivera uma zina danada à Roseta e devia pensar que eu estava a trair todos os meus ideais ao apoiar tal pessoa.

- Sabes, ela é mesmo uma grande mulher…

Espanto meu, a boca a abrir-se-me, já não de sono, mas de estupefacção.

-…e trago um peso comigo e tenho que desabafar. Lembras-te quando a AD ganhou as eleições?

E sem me deixar confirmar:

...pois fizeram um grande desfile na avenida onde eu morava. Num dos carros abertos ia a Helena Roseta. Eu já não podia com os vivas, as buzinas e o engano que o Povo sofrera nas urnas. Quando ela passou junto ao meu prédio, deu-me uma fúria maluca, agarrei num vaso e atirei-o contra o carro onde ela ia.

Vaso ainda no ar e já eu me arrependia amargamente do impensado do meu gesto. Nesse momento até me fiz religioso e pedi: – aí meu Deus faz com a que o vaso não atinja alguém. Milagre dos milagres, entre a multidão compacta, foi estilhaçar-se com estrondo, que parou a manifestação, numa zona completamente livre de gente. Respirei aliviado e segundos depois alguém tocou à campainha da minha porta. Percebi a mensagem mas, amargurado que estava, decidi-me a enfrentar a responsabilidade. Pelo intercomunicador, perguntei quem era. Ninguém me respondeu. Desde então carrego comigo este peso…

- Certo, não sabia nada disso, mas porque é que me escolheste a mim para desabafares e a esta hora da manhã?

- Já te disse, foi o teu blogue, pá! É que agora vivo em Lisboa e quero que saibas que vou votar na Helena Roseta para a Câmara. Vou entregar-lhe a flor que faltava no vaso que lhe atirei.






Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/

Posted by Picasa

3 comentários:

Anónimo disse...

o desenho está melhor que o texto. e sendo o texto de genial confecção...confesso a minha preferencia.

Carlos Correia disse...

Nunca ouviste dizer "quem os meus fihos beija a minha boca adoça"?

Flor disse...

Grande Helena!
Só foi pena na altura ter-se bandeado para os lados do PS.
Finalmente chegou à conclusão que estava enganada.
Em 2009 vou ser eu a candidata independente à Câmara do Barreiro, só para desestabilizar. O meu traje oficial vai ser uma Burka azul que pedi que o meu piloto me trouxesse do Afeganistão e a campanha vai basear-se naquele slogan "O Barreiro é um oásis para alguns camelos".
Beijokas