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março 03, 2010

A Justiça do Segredo




O Artigo 2º da Constituição define-nos como um Estado de Direito Democrático, onde, pelo menos em tese, a soberania reside no Povo. Quer isto dizer que todos os poderes legítimos derivam da vontade popular livremente expressa e do princípio da separação dos mesmos. O legislativo e o executivo são eleitos. O judicial não! Os seus hierarcas são votados, cooptados ou nomeados corporativamente ou pelos outros poderes dos quais são teoricamente independentes. Possuem, portanto, uma legitimidade delegada por quem também já tem um poder igualmente delegado. No entanto não seria por aqui que o gato iria às filhoses. O problema é que a estes mandatos que, pelas suas circunstâncias, ousarei chamar de limitados, juntam-se as questões de inamovibilidade e da irresponsabilidade, isto é, a nenhum juiz poderá ser retirado um caso por conveniências quaisquer, nem lhe poderá ser imputada responsabilidades sobre as decisões tomadas. Princípio justo que pretenderia salvaguardar a independência dos juízes mas que exigiria, continuadamente, que a existência dessa mesma independência, não fosse, de qualquer modo, comprometida pelo modo de designação, por compromissos partidários ou pela defesa do corpo fechado de agentes em que estas instituições se podem transformar. Por uma perversão de carácter o que era um meio poderá constituir-se como fim e, por vezes mesmo no único objectivo dessas instituições, numa lógica própria de sobrevivência e reprodução dos estatutos dos seus membros.

As semanas anteriores têm vindo a ser incendiadas por um vívido debate sobre o segredo de justiça e a legitimidade de o mesmo ser ultrapassado quando o interesse colectivo se opõe ao individual. Levanta-se uma primeira perplexidade quando, estando a soberania no povo, algo ou alguém, com um poder dele derivado, se permite decidir unilateralmente o que lhe deve ser dito ou ocultado. Por mais uma das abundantes subversões das nossas relações sociais perde o mandatário essa qualidade, passando a entidade subordinada a mandante, reduzindo tudo ao critério dos seus interesses institucionais. No limite chegaremos ao velho conceito salazarento do povo-criança, impreparado para entender os subtis caminhos das governações, a quem deve ser evitado o esforço desumano de conhecer e opinar sobre acontecimentos determinantes para a sua vivência.

Por tais artes parece estar assente o sacrossanto dever de preservar a todo o custo o dito segredo de justiça. Interroguemo-nos qual será o fim deste recato quando o que ele preserva são crimes contra pessoas ou bens, que deverão, por definição, ser públicos quer no julgamento quer no resultado a que se chegue em sede de juízo. Dizem-nos os mestres do Direito que tal secretismo poderá ser útil, durante algum tempo, para preservar e possibilitar a investigação. Muito bem! Estamos visivelmente na presença de um meio de duração limitada e com a única finalidade de facilitar a obtenção de provas, não alertando para tais intentos os indivíduos suspeitos. É compreensível e aceitável. Evita-se assim a destruição de provas e a obnubilação de factos ou circunstâncias. Só que, passado este momento crítico, o segredo de justiça será retirado e o processo ficará em domínio público. No entanto não é isto que verificamos no quotidiano judicial. Os inquéritos são intermináveis e o segredo de justiça nunca mais acaba. Resultado? Insatisfação, revolta e constantes fugas de informação no intuito de ilibar ou castigar, em público, o que a justiça não fez, em tempo, nos seus palácios. É a homeostase da sociedade civil a equilibrar os poderes mal entendidos que pretendem dominar o conhecimento e o direito de cada cidadão.

O caso mais flagrante e contemporâneo é, como toda a gente sabe, o das escutas telefónicas orientadas para negócios de sucatas que aparentemente apanhou na rede peixe muito mais graúdo e negócios de muito maior monta. Os representantes da justiça, em Aveiro, viram crime onde o Presidente do Supremo Tribunal e o Procurador de Justiça nada viram que tal se parecesse. Provavelmente andaram em faculdades diferentes e estudaram outro direito, porque tudo é gente de bem e ninguém cede a pressões de chefes ou governantes. O que neste caso me impressiona é o poder desmedido concedido ao Presidente do Supremo e ao PGR. Então se um primeiro-ministro for apanhado numa escuta a perpetrar um crime e se tiver poder para pressionar a seu favor qualquer uma destas entidades o crime nunca virá a público nem será julgado? Não é de bradar aos céus que para coisas bem menores seja necessário um colectivo de juízes e para situação de tal monta um apenas seja suficiente? Ou eu estou enganado ou isto não é mera distracção.

Um outro debate que destes casos decorre, mas ficará para melhor oportunidade, é o de saber da legitimidade das escutas, do seu emprego, da sua divulgação e, esclarecer muito melhor o que é do âmbito privado ou não. É que no limite mesmo combinar-se entre duas pessoas um golpe de estado ou a morte de alguém, desde que seja feito por meios próprios e entre duas pessoas poderá sempre ser uma conversa privada e, a contrário, se duas personalidades públicas falam aos telefones de suas casas, dos filhos, da mulher ou da amante corre-se o risco do exagero de se considerar conversa de interesse público. Como se vê o tema é vasto, perigoso e merece certamente melhor tratamento que aquele que a baixa política anda a dispensar-lhe.

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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