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março 24, 2010

Bullying à alentejana




(Excerto do capítulo Boa-Nova do romance em construção Concerto para Sanca João)

Saíamos compostos, por filas de carteiras, da sala de aulas. Passada a porta acabava a compostura e com gritos de selvagem liberdade corríamos direito às bicas dos bebedouros, alimentados, a partir da nora, pelo rodar incessante de um burro de olhos vendados, condenado, como Sísifo, àquele eterno deambular sem progresso que se visse. Quando cheguei às bicas já uma pequena multidão chegara à minha frente. Aguardei, na fila, a minha vez. Preparava-me para, dobrando o corpo, torcendo o pescoço, pôr a boca abaixo da bica escorrente quando, imperiosa uma voz eclodiu no recreio:

- Chegar e “boer”!

Desconhecia, por novato, as regras do recreio. Faziam gala, os alunos da quarta classe, em chegar ao recreio depois de todos os outros. Deixavam formar as bichas de pirilau para a dessedentação e então, fazendo valer o direito da sua senioridade e maior força física, afastavam os pobres gaiatos do bebedouro. Como estava na minha vez de beber, continuei sem me importar com a ordem do brutamontes o qual, colocando-se atrás de mim repetiu “chegar e boer”. Aos meus ouvidos moucos sucedeu um chapadão. Bati com o lábio na bica, rachando-o e abrindo um entorneiro de sangue que fez acudir o vigilante. Que se passa aqui? Nada, disse a brutidade. O puto escorregou e feriu o lábio. Ninguém tugiu nem mugiu. Olhei bem para a cara do mânfio enquanto era levado para a enfermaria para ser tratado.

Quando a minha mãe me viu com o lábio num trambolho ficou aflita e irritada. Que não, dizia o vigilante, não fora briga nenhuma. Escorregara no chão molhado do bebedouro e magoara-me. Calei-me e só a caminho de casa contei à minha mãe o acontecido. Amanhã levas um barril com água. Isso não volta a acontecer, decidiu. Escolhi o barril. O maior! Feito de um barro forte e vermelho. É muito grande! Não, mãe. É este que eu quero. É bom. Mas vais muito carregado para a escola. Não vou. Ponho um cordel dobrado entre as asas e assim não custa nada. Raio de rapaz, teimoso como tudo. Levei a minha avante e, no dia seguinte, sozinho, derreado pelo peso da sacola de serapilheira levada a tiracolo e pelo incómodo do barril, lá fui para o meu segundo dia de aulas. Embora gostasse de aprender e o início do ano fosse mais passado em jogos que em qualquer coisa parecida com aprender – inquieta a minha mãe perguntava-me se já escrevera letras, lera ou cantara a tabuada ficando muito desiludida quando lhe dizia só cantámos, jogámos e o professor é que leu e falou connosco sobre o que tinha lido – nesse dia o tempo, até ao recreio da manhã, parecia não passar. Mal se ouviu o toque da campainha saltei como mola retesada levando o professor a mandar-me sentar advertindo: mesmo que o sino toque só se levantam quando eu disser. Permaneceu pétreo, olhando-me fundo, debaixo do crucifixo, enquadrado pelas fotografias, sempre presentes, do Marechal Carmona, feito presidente da República e do verdadeiro mandante Oliveira Salazar. Ao podem sair corri para o bebedouro encostando, com desvelo ao peito, o pesado barril cheiinho de água. Não fiquei na fila. Coloquei-me estrategicamente nas imediações das torneiras e aguardei que chegasse o crápula que me tinha rachado o lábio. Quando o espertalhão se inclinou para beber só deve ter notado o barril a atingir-lhe as têmporas quando o rasgão na pele se abriu e o sangue dele se derramou no exacto lugar onde o meu correra no dia anterior. À estupefacção de caloiros e veteranos seguiu-se um burburinho da malta da quarta a avançar contra mim. O voltear do barril na minha frente, fazendo um zunido de vento a ser cortado, dissuadiu a turba das intenções vindicativas que contra mim laboravam. Quando o vigilante, sempre tardio, apareceu eu, adiantando-me a todos os outros, olhei-o bem fundo nos olhos, informando-o: escorregou na lama ao vir beber. Ninguém me desdisse e nunca mais, estando a beber, alguém com insolência me disse: “chegar e boer”

Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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