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janeiro 19, 2011

Cinzas



Talvez porque eu, como muitos da minha geração, tive na guerra colonial contactos próximos com a morte, apreendendo, portanto, com urgência, a fragilidade e a beleza da vida, sou, intrinsecamente, contra qualquer pena de morte induzida por pessoa individual ou coletiva.

Apresentado este princípio norteador do meu viver posso então entrar na matéria que, por incómodo próprio, decidi tratar. Vou talvez ferir suscetibilidades e vou, sobretudo, opor-me ao suave modo português de tudo perdoar a quem se finou. Falo, como já poderão ter-se apercebido do assassínio do cronista social Carlos Castro.

Nunca o conheci pessoalmente mas já tanto não digo da sua sombra civil. Era o homem da maledicência e dos escândalos que, a seu critério, distribuía pelas revistas e colunas cor-de-rosa, lançando gentes em breve fogachos de notoriedade e humilhando aqueles que não lhe interessavam ou não seguiam os códigos cediços do pobre “jet-set” onde turbilhonava. Era, para mim, um ser execrável. Depois de morto, nada disto tendo mudado, continuou a sê-lo. Que não mereceria a morte que o segou? Plenamente de acordo. Mas não exclusivamente por ele, tão só porque ninguém merece a ceifa da sua vida antes que ela tenha naturalmente termo ou que o cidadão, por ponderosos motivos, o decida para si próprio.

Por ter esta ideia da pessoa em causa e por saber que havia multidões que pensavam o mesmo, surpreendeu-me que, num repente, aparecessem milhares de amigos a debitarem virtudes e saudades, mesmo em gente que, eu sabia, por ele nutria senão ódio, pelo menos um requintado desprezo. Sendo embora a rasoira da morte a aplanar saliências de passadas ofensas, espantou-me o rio de hipocrisia que vi desaguar nos nossos meios de comunicação. Parecia que um novo Camões ou Pessoa se tinha finado. Só faltou uma alocução ou presença funerária do primeiro magistrado da nação. Não venham acusar-me, por esta posição, de homofobia ou coisa que o valha. Não sofro de tal pecado e, tenho dado testemunho bastante do meu respeito pelos sentimentos dos seres humanos expressem-se eles lá como se expressarem. Só lhes peço autenticidade.

Portanto, Carlos Castro foi assassinado, foi vítima de um ato de extrema violência e nenhum motivo poderá justificar esta ação. Quem o matou foi Renato Seabra, um jovem manequim temporariamente residente com a vítima no quarto de um hotel nova-iorquino. Em redor do algoz levantou-se um coro de solidariedade inabitual. Talvez pela sua juventude, pela beleza, pelos sonhos caídos a partir do instante do crime. Sugerem-se motivos. Declaram-se causas. Procuram-se desculpas. Mas poderá haver defesa para um ato tão definitivo como o de causar a morte a alguém? Poderá, sim, haver atenuantes mas nunca justificação plena. Todos somos capazes de cometer assassínio mas, no seu evitamento, está a diferença entre barbárie e civilização. Renato matou, é, ao que parece, uma certeza. A vida que sonhava deixou de ser possível. De certo modo ao assassinar assassinou-se senão a ele próprio, pelo menos ao seu devir. É tão lamentável esta situação como a da morte da vítima. Parece-me, portanto que neste caso não haverá inocentes mas todos serão, ao mesmo tempo, algozes e vítimas. Renato tinha um sonho e, provavelmente, decidiu utilizar pessoas como meio de o atingir. Pessoas essas que também decidiram utilizar Renato para os seus fins. É o círculo de enganos da fama fácil e das alienações consentidas para lá chegar. É não saber que o primeiro dia de glória é igualmente o primeiro dia de deceção e apagamento. Mas esta é a nossa sociedade. Aquela em que vivemos e consentimos. A que destrói valores de humanidade, dignidade, solidariedade, em troca da ilusão de uns quantos dias de ribalta. Custe lá isso o que custar. O sucesso a qualquer custo é o objetivo. Tudo o mais é secundário. Ou pelo menos assim parece. O problema está no preço a pagar. Há sempre um dia em que a fatura nos é enviada. Nesse dia há que pagar o preço. Para o jovem assassino a fatura chegou talvez demasiado cedo e a despropósito. Reagiu e, aprendiz de feiticeiro, queimou-se no próprio feitiço. Até onde ainda não sabemos.

Indiferentes a leis, respeito pelos outros ou qualquer outra conveniência, as irmãs e alguns amigos de Carlos Castro, numa explosão de egoísmo e desprezo absoluto, decidiram despejar num dos respiradouros do metro de Nova York, parte das cinzas do malogrado cronista. Neste ato está expresso tudo quanto me parece ser os valores dessa gente. Não se sabe porque divino decreto eles não têm de obedecer às regras que jungem o comum dos mortais. Não senhor, isso não é para eles. Se o amigo, o irmão decidiu dar-se a respirar aos cidadãos de qualquer urbe, que direito têm estes de se oporem a tão profundo desígnio? Será que não se apercebem do tremendo favor que lhe é concedido ao incorporarem as cinzas do grande homem que, por azar, não conhecem nem reconhecem? E isso que tem? Os mandantes da vontade do morto têm opinião bastante para eles e para os outros. Estes nem precisam de se incomodar com coisas tão cansativas como ter vontade própria. Cá estão tais amigos para de tanto trabalho os aliviarem. Deviam ainda era agradecer.

Perante tanta pesporrência só resta, pregando no deserto, dizer que se deixe de olhar para o acessório e se parta de vez na conquista do essencial. A fama, os holofotes, o breve reconhecimento são cinzas deitadas sobre o mar. Nem memórias deixam que se vejam. Só lutos espalhados no vento da pouca duração.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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