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maio 01, 2010

O Hospício - (ou quem há-de gabar a noiva)




Abstraído na leitura do jornal só acordei para o mundo quando um amigável porradão nas costas me fez ejectar meia bica direitinha para a página, de quotidiana desgraça, onde a minha atenção se concentrava.

Então, agora deste em actor? Perguntou-me de chofre antes que o pudesse cumprimentar e limpasse o nariz, por onde parte do café, desagradavelmente, encontrara espaço de saída. Era, como não podia deixar de ser o impagável Belegário. O homem parece, por vezes, que é bruxo. Passo tempos sem o ver mas, sempre que algo diferente acontece na minha vida, lá me aparece ele, supimpa, sorridente, sem remorsos ou pudor, inopinado a interceptar os meus percursos.

Olá, Belegário, pelo menos diz bom dia. Resmungou um sumido “bdiapá” e voltou de imediato ao que lhe interessava. Estava para te telefonar mas achei melhor ter um bate papo pessoal contigo por causa da peça. Foste ver? Ná! Só gosto de comédias. Para mim o teatro é para depois de um bom jantar e uns copitos no bucho ir dar umas gargalhadas com as maluquices e as piadas dos actores. O que me traz atarantado é como te foste meter nessa alhada. Já tinhas idade para ter juízo. Então juntas-te a um grupo de comediantes assim sem mais nem menos? Olha lá, disse, o que é que isso de comediantes e o que é que tens contra eles? Pareces um velho do século dezanove eivado de preconceitos de classe. É pá, mas o que é que vão pensar os teus antigos colegas das direcções das empresas ao ver-te nessas andanças. Não sei, repliquei, nem tal me preocupa, uns acharão mal, outros divertir-se-ão com a ideia e outros ainda, mais amigos ou conhecedores do meu feitio iconoclasta encolherão os ombros com um sorriso e, compreensivelmente, dirão ele foi sempre assim.

Pois, pois, mas estou curioso por saber como te foste meter nisso, Conta lá, pá!

Foi simples, um dia o Luciano Barata telefonou-me para me convidar para fazer um papel na peça que, no Grupo Projéctor, o Abílio Apolinário estava a encenar. A peça era O Hospício, também conhecida como Marat/Sade, ou no título original - e prepara o fôlego para poderes repeti-lo - “Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representada pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton sob a Direcção do Marquês de Sade”. Claro que fiquei um pouco baralhado. Já não fazia teatro desde o Secundário e esta peça, eu conhecia-a, tinha-a visto há umas dezenas de anos na Comuna, com actores do gabarito de Carlos Paulo (Marat) e Carlos Wallenstein (Sade) e conhecia bem a complexidade do texto e as dificuldades de encenação e interpretação de figuras e época. Não tremi com o convite porque pensei que apenas necessitavam de mim para fazer número no conjunto dos doidos do hospício e lá fui, ao Bar do Franceses, falar com o meu amigo Luciano e com o desconhecido, e agora também amigo, Abílio. Ao saber que ele tinha estado na Comuna e que tinha participado no Marat/Sade, percebi que iríamos falar de um teatro de ideias, de encenações radicais e de uma experiência arrojada, tendo em conta as dificuldades da peça e a exigência cénica, histriónica e de interpretação exigidas por este texto de reconhecidos méritos mundiais, bem como o espaço e maquinaria teatral existentes. Entusiasmou-me o arrojo da ideia e fiquei logo conquistado para o projecto. Só fui acometido pelo terror quando, impudicamente, me propuseram o papel de Marat. Não me parecia estar ao meu alcance encarnar aquela tremenda figura de revolucionário jacobino, bem como ter ainda capacidades de memorização para as profundas e imensas falas da personagem. Após longo conciliábulo lá me decidi, a título meramente experimental, testar as minhas capacidades. Abro aqui um breve parêntesis para te dizer, Belegário, que outro tanto se passou com o Mário Durval, o qual, de igual modo, acrescentando com generosidade mais este aos seus muitos afazeres, decidiu entrar no barco.

Sobre o trabalho insano que foi para todo o grupo pôr em cena esta peça não vou falar-te senão para sublinhar que neste conjunto, onde não há actores principais e figurantes – cada um fazendo à vez, em cada peça, o papel que lhe é distribuído - se encontra uma vasta plêiade de talentos, espírito de sacrifício e boas vontades, todos empenhando-se, de igual modo, no conseguimento da percepção e ritmo da obra, entregando-se profundamente ao seu conseguimento, conscientes de que um menor empenhamento pessoal poderia fazer soçobrar o esforço colectivo.

É pá, interrompeu-me o Belegário, mas não achas que é uma grande estopada passar duas horas a ver malucos e ouvir discursos inflamados sobre a Revolução Francesa? Eu sempre detestei esse período da história. Para mim foi sempre uma confusão de acontecimentos, nomes e cortes de cabeças. É bem verdade, respondi-lhe, mas não te esqueças que ainda hoje, os direitos humanos por que sempre te andas a bater, e que por vezes te põem de mal com deus e com o diabo, são o resultado dessas lutas. A América que diga onde foi beber os seus ideais de liberdade e onde baseou a sua Constituição. E as nossa também! Mas passemos adiante e falemos mais na peça e no autor. O Peter Weiss, nascido na Alemanha, refugiado em consequência das perseguições nazi, escreveu esta peça em 1964. Caso raro com as grandes obras, foi logo um êxito. Com certeza que o período de intensa mudança social em que apareceu contribuiu para a sua afirmação. O tema, a linguagem, a intencionalidade assentavam como uma luva nas mudanças que se preparavam em todo o mundo e que vieram a ter os seus corolários nos movimentos de 1969 e posteriormente, nos anos 70, inclusive em Portugal. O texto desta peça foi perfeitamente compreendido como actual naquelas décadas e, facto notável, volta a estar novamente em dia nos tempos que correm e no nosso País. Mais uma vez Jacobinos e Girondinos – com outros nomes e outros discursos – se confrontam num mundo em crise de transição e, talvez não muito distante no tempo, revolta. Para te aperceberes, vou socorrer-me de análises de várias pessoas e fontes (entre elas a entrada Peter Weiss da Wikipédia), sobre os três níveis diferentes mas simultâneos em que a acção se situa:

O Primeiro nível é situado em 1808. Sade está preso, pelas suas ideias e práticas, no Hospício de Charenton. Escreve aí algumas das suas obras mais conhecidas e, como forma de tratamento de doentes mentais encena peças, no Hospício, a que assistem as classes superiores da sociedade revolucionária francesa. São personagens deste nível Sade, o Director Coulmier e os doentes.

O segundo passa-se em 1793 quando a Girondina Charlotte Corday assassina o líder Jacobino Jean-Paul Marat, plumitivo, deputado do povo e absolutamente radical. Aqui pontuam Marat, Charlotte Corday, Duperret – deputado girondino e amante de Charlotte – e Jacques Roux, padre e radical apoiante de Marat.

“A terceira esfera temporal (ou nível) é a do leitor que lê ou assiste à peça, podendo ser tanto público da peça de Weiss como da peça de Sade”, cabendo-lhe a ele as identificações do discurso e a sua adesão às realidades presentes.

Por isto o Grupo Projéctor fez um esforço imenso para que a peça fosse apresentada no dia 25 de Abril. Como ainda a não foste ver, terás possivelmente algumas dificuldades em apreender o sentido profundo desta última “esfera temporal”. Por isso te recomendo vivamente que não a percas – desculpa-me este descarado gabar da noiva pelo noivo – porque não darás por mal-empregado o teu tempo e, muito possivelmente sentirás como és tu também personagem e actor de um drama semelhante e actual passado nos conturbados tempos que o mundo em geral, e o nosso país em particular, atravessam.

Vai, em qualquer dos fins-de-semana de Maio, aos Franceses ver a peça. Leva a família e os amigos. Vão ver que não se vão arrepender.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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