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fevereiro 11, 2008

Matar o rei

Posted by Picasa
Andava completamente enlevado nas minhas emocionadas relações com a República, quando, um pouco de todo o lado, charangas anunciam o centésimo aniversário da morte do rei Carlos. Foi um vê se te avias de notícias, artigos, pagelas, livros, homenagens, remoques e condenações. A República ficou perturbada, tornou-se enjoada e esquiva e o fulgor do nosso relacionamento viu-se seriamente ameaçado.

Não gostei nem um bocadinho que viessem, deste modo, perturbar o meu embevecimento.

Então eu que sou, como o outro embora diferentemente, socialista, republicano e laico ia deixar-me lesar pelos anseios cediços de uns não sei quantos saudosos do fausto cortesão, pondo em causa o meu bem quisto regime pelo preço de algumas acusações sobre um possível pecado original e sangrento na sua fundação?

Para meu escarmento socorri-me do meu amigo Belegário, alter-ego necessário em dificultosos momentos, de modo a que, no espelho lúcido da sua dialéctica, reflectisse as resposta imprescindíveis ao meu esclarecimento e consequente paz de espírito.


- Sabes bem que sou contra a pena de morte. Não há local de reunião contra a nefanda onde eu não vá, não há abaixo-assinado que não assine, nem manifestação em que a minha voz não espraie a total indignação por tão abominável forma de (in)justiça…

- Já te conheço a conversa, atalhou. A seguir vais dizer-me que, por outro lado…

- Não sejas palerma e escuta-me. Esta questão da morte do Carlos de Bragança começa a agastar-me. Mesmo sendo contrário à pena de morte não consigo ficar indiferente à forma com estão a tratar o regicídio. Não pode ser olhado apenas como caso moral aquilo que é notoriamente derivado do foro político. Se os matadores foram criminosos, heróis ou qualquer outra coisa não deixa de ser importante, mas o que mais interessa é conhecer as razões que levaram a tais acontecimentos, bem como as suas consequências.

- Ora, está claro, afirmou o Belegário, quem mata é sem dúvida assassino. Quem mata o rei é ainda pior porque pretende, com essa morte, abater o Estado.

- E as circunstâncias dos acontecimentos, não valem nada? É ou não verdade que o Rei criou e apoiava a ditadura do João Franco? É ou não verdade que tinha assinado o decreto de deportação das chefias republicanas para Timor? E o que era isso senão condenar à morte, irrevogável e morosa, toda essa gente?

- Isso, meu amigo, seria um acto em potência. Poderia acontecer ou não. O regicídio foi uma calamidade verificada e gritante contra um rei legítimo, ainda por cima sábio.

- Não sou indiferente às qualidades humanas do rei. Reconheço-lhe o talento pictórico bem como a competência científica nas ciências marítimas. Mas uma coisa é o homem, outra bem diferente é o estadista e a sua política. Aquilo que os regicidas atacaram foi o estadista…

- Pois…pois, mas quem morreu e completamente foi o homem.

-É verdade que sim, mas não morreu sozinho. O Buiça e o Costa também morreram e ao contrário do rei sabiam que iriam morrer. Não podemos ser tão ligeiros a condenar e a julgar aqueles que por razões poderosas cometem actos que transcendem o comummente aceite. Alguém que põe em jogo a sua vida para atingir os seus ideais pode estar errado, mas merece que os seus actos e juízos sejam analisados à luz dos contextos que os emolduram.

Foi aqui que o Belegário perdeu o pio. Por muito que o não queira lembrar sabe que os regicidas não poderiam ignorar que dificilmente sobreviveriam ao atentado. Saldariam a conta da morte do rei com as suas mortes. Era troca por troca, pagando o preço máximo. Não regatearam os custos O heroísmo e a execração convivem paredes meias.

A simpatia que a pessoa de Carlos de Bragança poderia suscitar foi ultrapassada pelo peso dos actos políticos e económicos lesivos do País e das ideologias igualitárias e progressistas que campeavam pelo mundo. À luz da conjuntura e dos seus actos é natural que a sua pessoa fosse vista como um obstáculo ao avanço das mudanças, que se sabiam necessárias, para a continuidade do percurso histórico do País. Como obstáculo que era, teria de ser removido.

Pessoalmente estou convencido que mesmo sem o atentado o advento da República era apenas uma questão de tempo. Desde o principio que o reinado de D. Carlos foi ferido, pelos seus amigos ingleses, com o Ultimato. A monarquia, por débil, não conseguiu evitar a humilhação sentida pelos portugueses. A coroa decrépita, mais caduca ainda se tornou. Não passava do fantasma envilecido de si mesma. Já não representava as forças vivas da economia e do pensamento. No entanto, as suas rendas, mesmo rasgadas e amarelecidas, ainda chocavam com a plena misérias das classes populares e com o poder emergente, denegado pela aristocracia, das classes burguesas. Como resultado as sociedades secretas proliferaram e introduziram-se nos interstício do poder, minando-o e destroçando-o aos poucos.

Por tudo isto, se a morte de um homem me choca pelo que tem de definitivo, recuso-me a condenar os executores e a engrandecer a vítima, esquecendo os seus papéis como agentes históricos. Muito menos quero fazer coro com esses passadistas impenitentes que gostariam de voltar atrás no tempo para restabelecer a monarquia. Tal veleidade resulta, para mim, impensável. Não concebo que alguém julgue que, por circunstâncias de nascimento, adquire mais direitos do que qualquer outra pessoa assim sendo até aos fins dos séculos, transitando tais direitos de geração em geração e mantendo-se, como gostam de dizer, “cada macaco no seu galho”. Que se pendurem pelos braços na árvore da evolução e lá se deixem ficar, quedos e velhos, é escolha que lhes cabe e fiquem muito felizes com ela. Mas não queiram ressuscitar o que a História sepultou. Os que pensam como eu, continuarão a lutar por um mundo de iguais em direitos, em que a única diferença provenha da natural distinção entre uma individualidade e outra, sem que isso produza cartilha de privilégios desiguais.

Acabe assim para sempre o domínio dos braganças e quejandos. Ponto final, assunto encerrado.

-Encerrado o tanas! Replicou o Belegário. Nada na sociedade está terminado para sempre. As coisas vão e vem. Se não como réplicas completas, sempre como actualizações. Quer tu queiras quer não queiras, por esclarecimento, reacção ou por nada disto, há pessoas que porão em causa o regime em que vivemos e quererão voltar à antiga monarquia. E têm o seu direito... mas o que agora me interessa é saber se o caso fosse contigo matavas o rei ou não?

Pesei os prós e os contras. Pus na balança as razões e os princípios. Desejando intrinsecamente a instauração da República, ansiando a mudança, odiando a ideologia dos aristocratas, posso dizer-te que de modo algum mataria o rei. Preferia que a República sofresse atrasos mas que viesse pelo seu pé. Esta é a minha escolha pessoal, não obriga ninguém a partilhá-la, mas também não permite que sob ela se acuse gratuitamente quem tomou a difícil decisão de, matando-se, matar o rei.


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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