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novembro 28, 2007

Onde há carne sempre voam abutres

Posted by Picasa

Conheci o Alexandre nos anos cinquenta. Vizinhos de tenda num acampamento internacional era um dos poucos que se relacionava com ele. De anos, tínhamos os mesmos, mas ele era muito mais velho do que eu.

O Alexandre era casapiano. Ainda antes dele e dos seus colegas chegarem ao local do acampamento, já corriam rumores de que os casapianos iam chegar. Acompanhava o sururu uma nota de precaução no sentido de não se lhes dar confiança porque os putos da Casa Pia eram arruaceiros, ladrões e mariconços.

Isto sem mais nem menos há quase cinquenta anos.

Portanto podemos concluir que os casos Casa Pia não são unicamente os de data recente mas já se perdem no fumo das histórias contemporâneas.

Escrevo isto como forma de justificação dos acontecimentos mais recentes ou para justificar os procedimentos de quantos estão acusados de pedofilia e abusos sexuais a menores?

Nem pouco mais ou menos.

A minha intenção é tão-somente não me deixar embarcar nas indignações fáceis, igual aquelas que o bom povo ululante faz às portas dos tribunais para se sentir superior a quem de alguns crimes vai acusado, mas de tentar situar os dados do problema para que, compreendido, melhor possa ser atacado e ultrapassado.


Comecemos pela pedofilia. Correndo o risco de chocar muita gente bem pensante sou obrigado a reconhecer que esta prática não é, na sua substância, um crime. É crime nas sociedades onde a instituição jurídica ou os preceitos morais assim o considera. Por mais chocantes que algumas práticas possam ser para um dado povo ou cultura, pode a mesma ser considerada inócua, ou mesmo virtuosa, numa outra talvez não muito distante na geografia ou na história.


Concretizemos. Aquilo a que chamamos pedofilia é entendido em algumas culturas como protecção de menores. Assim, em certas etnias na Índia era costume (ou ainda é) casar as raparigas em tenra idade, com homens mais velhos que, em caso de desaparecimento dos pais lhe garantiam a protecção necessária numa sociedade onde uma rapariga sozinha não poderia sobreviver. Na Melanésia, em muitas tribos, a iniciação sexual faz-se em crianças muito novas (de ambos os sexos) por um familiar próximo. Seja-me perdoado a generalidade destas informações mas, como apenas as utilizo como ilustrações, seria fastidioso enumerar minuciosamente essas etnias, costumes e regiões.

Por outro lado, temos a grande norma fundadora das sociedades que é a proibição do incesto. Com efeito, um dado homem ao privar-se da posse sexual de uma mulher da sua família, entregando-a a outro, funda uma aliança que é a base das relações familiares, económicas e societais. Presume-se que a horda se torna grupo com a instituição desta regra. No entanto, a regra é criada para suprir falhas de “comportamento natural”. Mas, sendo as normas impostas, pelo exterior ao indivíduo, demoram anos a ser globalmente interiorizadas como “comportamento natural”. Até chegarem e esse estádio - e um pouco menos quando é atingido - necessitam de vigilância e sanções para os prevaricadores. Assim se cria o crime e o castigo.

Feita esta leve incursão por tropos antropológicos regressemos ao assunto.

Na civilização ocidental está profundamente assente a regra da proibição do incesto. Faz parte integrante daquilo que para nós é proceder “naturalmente”. Todo o agir a contrário nos choca e ofende. Reagimos a essa quebras com indignação e nojo. Mas se reagimos é porque, para lá de leis e proibições, o facto existe. É uma pulsão? É um desvio de personalidade? É a vontade de transgredir porque a falta é mais aliciante que o cumprimento?

É possivelmente um pouco de tudo isto.

Por isso vamos encontrar, transversal a toda a sociedade, com enorme incidência nos familiares próximos, comportamentos sexuais virados contra os menores calados por uma complexa rede de afectos, dependências e pesados silêncios.

Em que é que os acontecimentos da Casa Pia se destaca deste pano de fundo desagradável, mas existente? No facto de que estas crianças, entregues ao Estado, estarem mais desprotegidas e, durante muito tempo terem sido sujeitos de direito ténue e socialmente desvalorizadas. O chocante é que elas foram mais coisas que pessoas, mais objectos que sujeitos.

Um objecto é transaccionável, utilizável e descartável.

Assim aconteceu, tantos anos, aos deserdados da sorte que residem nas esmolas das instituições. Menos que cidadãos, por posição e idade, habitam um estatuto de menoridade social que permite, sem grandes escrúpulos ou perigos, o desabalado prazer de quantos aceitam estar acima das leis por poder, riqueza ou fama. Ah! É claro, também daqueles que, à sombra da protecção dos poderosos, lhe servem os seus banquetes proibidos, esperando protecção eficaz e eterna.

Mais ainda! Nem sempre as crianças são meros agentes passivos na situação. A falta de carinho, a impessoalidade institucional, a identidade fluída e as solicitações de uma sociedade do Ter, roçando pela sua impossibilidade económica, resultam num Ser difuso, desorientado, pronto para procurar e ceder perante deslumbramentos de consumo impossível, tornados realizáveis.

Por isso, todas as medidas de investigação, olhando para o passado, não vêem o presente. Nem vislumbram o futuro. Só a consideração de completude e identidade de cada ser humano é medida suficiente para obstar à continuidade de casos Casa Pia. Isto é trabalho árduo, para muitos anos, que não se limita apenas a justiça e acompanhamento, mas que tem a ver com a estrutura profunda da sociedade envolvente.

Não sei o que foi feito do Alexandre. Após a curta temporada que durou o acampamento voltámos, aos nossos espaços e ocupações, sem mais sabermos um do outro. Nunca me esquecerei porém que ao ouvi-lo contar as suas aventuras perdi a inocente visão de um mundo, senão paradisíaco, pelo menos certo e seguro. Ele trouxe-me o cinismo necessário à sobrevivência num meio selvático, do qual me sentia protegido e, se não me disse, pelo menos fez-me pensar que onde há carne sempre voam abutres.



Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt





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