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janeiro 28, 2007

A excepção e a regra

A caminho de Urga, atravessando o deserto vão um viajante e o seu guia. O viajante é um homem cruel que sobrecarrega desumanamente o seu servidor, negando-lhe mesmo em determinada parte do percurso, quando a água escasseava e se tornava vital, o quinhão que lhe pertencia.

De acidente em acidente chegam, ou chega o guia à cidade demandada, sendo este remetido para a justiça por o viajante ter morrido, ou pelo mesmo, não tendo morrido, ter apresentado qualquer queixa contra o guia.

Apesar de ficar demonstrado, em juízo, que o comportamento do guia foi de exemplar humanismo e superior paciência, também se estabeleceu uma enorme desconfiança por o mesmo ser uma excepção absoluta em relação à expectável conduta de alguém submetido a tais vexames.

Assim, por ser uma excepção, foi o guia condenado em nome da regra e dos procedimentos estabelecidos.

Esta súmula imprecisa – há muitos anos que li a peça de Brecht a quem “roubei” o título desta crónica e muito detalhes já se me escapam – serve para introduzir mais um apontamento sobre o caso do Sargento Luís Gomes.

Como se sabe está condenado a seis anos de prisão por não entregar, como a regra defendida pelo tribunal manda, a criança que vive como filha, na sua família, há quase cinco anos.

Ele, tal como o guia, não se comportou da forma estabelecida. Faltou aos costumes! A excepção do seu comportamento valeu-lhe a condenação, conforme acórdão do Tribunal de Tomar por: Crime de Sequestro Agravado, Crime de subtracção de menor, Regulação do poder paternal e Recusa de entrega de menor a pai biológico.

O acórdão tem 43 páginas e representa, para um leigo como eu, o exercício absoluto da norma sem a temperança de um juízo que a enquadre e faça perceber a excepcionalidade psicossociológica do quadro.

Recordando o caso: Uma mãe em desespero socioeconómico não recebeu reconhecimento de paternidade nem auxílio para criar uma filha nascida de uma relação pontual com o alegado pai biológico. No desespero da situação procurou alguém que lhe garantisse a subsistência e vida da filha. Encontrou o porto de abrigo no casal Luís Gomes e Maria Adelina que recolheram a criança e a trataram como filha.

Em acto de registo de nascimento da menina, como a lei portuguesa não admite a situação de filhos de pais incógnitos, foi o provável pai biológico, sob intimação judicial e custódia da GNR, obrigado a sujeitar-se a testes de genética os quais viriam a provar a sua paternidade.

Ao que consta, a partir daí, o já provado pai biológico apresentou a sua pretensão à tutela da menina, que lhe foi concedida pelo tribunal, em Julho de 2004, isto é, quando a menina já, há dois anos, fazia parte integrante da família adoptante.

Ignorando a teia de afectos entretanto criada, a possibilidade de, não fora a adopção de facto exercida pelo casal, talvez a menina já não se encontrasse viva ou fosse mais uma criança abandonada, o tribunal mandou entregar, de imediato e friamente, a criança ao pai biológico. Não teve em conta, minimamente os interesses da criança, os sentimentos dos pais adoptantes, nem os efeitos de mudança de hábitos e ritmos na vida da menina.

Esta primeira decisão tardia e cega foi causa bastante para precipitar todos os acontecimentos posteriores. Está aqui, no meu parecer, a génese do mal o qual é completamente atribuível à demora e insensibilidade social da justiça.

O acórdão do Tribunal de Tomar, para além de erros e omissões já apontados em vários jornais, seguiu este precedente, tornando-o mais gravoso por ter vindo a lume já passados cinco anos sobre o início do caso e por se ter declarado inequivocamente a favor do biológico contra o social, do legal contra o afectivo, do rigor mecânico e estático das normas contra a sua interpretação à luz da dinâmica dos afectos e da vida real.

Os nossos vizinhos britânicos resolveram esta dicotomia optando pelo uso simultâneo de duas fontes de direito. O direito inscrito nos códigos e o consuetudinário. Quer-se dizer que os usos e costumes de um dado lugar ou época podem fazer alterar o sentido de uma lei escrita. Depende do juízo e conhecimento do julgador.

Não sei se os resultados desta forma de fazer justiça são melhores ou piores que aquele que é utilizado nos tribunais portugueses. Sei apenas que permitiria uma decisão diferente daquela que foi tomada e que, tão justamente, causou enorme comoção entre os nossos conterrâneos, por princípio, tão desatentos do exercício quotidiano da cidadania. Sei também que não há muitos anos as uniões de facto não só não eram reconhecidas legalmente como eram fonte de vergonha e hoje, para quase todos os efeitos, são comparáveis aos casamentos de “papel passado”. Resta-me esperar que o mesmo se venha a passar nos casos em que, como neste, exista, sem qualquer dúvida, uma adopção de facto.

PS 1 – O sargento Luís Gomes continua encarcerado e com uma pena de 6 anos a cumprir e, pasme-se, com o Ministério Público, generoso e magnânimo a pedir a redução para 4 anos!! Assusta-me que com tal liberalidade possa tão brevemente regressar ao nosso convívio um tão perigoso e cadastrado “sequestrador”.

PS 2 – No dia 11 de Fevereiro vou votar, novamente, SIM


Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt

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