Os inventores de Guantânamo
O homem está despido, de mãos amarradas atrás das costas. Os olhos estão vendados. Pressente que na sua frente estão dois soldados e que outros dois, ladeando-o, lhe seguram os braços. Não entende o que lhe berra quem está na sua frente. Falam-lhe numa língua que não é a sua. Não percebe o que eles querem. No entanto a cada frase, que supõe ser uma pergunta feita de forma aterradora, mergulham-lhe meio corpo no bidão de água até os pulmões estalarem e o líquido, como faca acerada, subir pelo nariz rasgando em dor o caminho da sufocação. Quase no limite do afogamento retiram-no da água, repetem as incompreensíveis perguntas e, antes do tempo necessário para recobrar o fôlego, voltam a mergulhá-lo no horror. A qualquer instante pode morrer. No início do interrogatório temia o sofrimento e a morte, agora que a aflição é insuportável se a morte viesse seria aceite como almejada libertação.
Isto, consideraram os próceres judicativos dos Estado Unidos da América, não é tortura. É um método de indução da verdade! Abu Ghraib também não foi tortura. Foi apenas um abuso da soldadesca sem conhecimento dos comandos superiores. Esta é a lógica e a moral do império. Nada que ele faça é censurável. Censuráveis são os outros, façam eles lá o que fizerem, desde que tal seja inconveniente para os interesses do tio Sam.
É a mesma moral com que pretendem decidir quem tem, ou não, o direito de possuir armas atómicas. Pergunta-se de onde lhe vem tal autoridade quando, em todo o mundo, foram eles os únicos, até agora, a utilizar, por duas vezes, a bomba atómica para exterminação voluntária e consciente de populações civis. Não é, como se prova, gente que mereça muita confiança. Talvez por isso não sejam signatários e não reconheçam a jurisdição do Tribunal Internacional. Têm certamente receio de saber de forma apodíctica o que das suas acções pensa o mundo. Amedronta-os as consequências dos seus actos. Apesar disso continuam, olímpicos e unilaterais, a pretender regular os direitos dos outros. Tentaram utilizar a noção de “guerra preventiva”, isto é, a possibilidade de atacar, sem prévia declaração de guerra ou provocação, qualquer país no mundo, desde que não lhes agradasse ou conviesse as decisões soberanas do mesmo. Antes desta doutrina, nos anos 60 e 70 do século passado, puseram a América Latina a ferro e fogo, derrubando governos democraticamente eleitos, substituindo-os por ferozes ditaduras, em nome de uma liberdade e democracia que outra coisa não era mais que máscaras para os seus interesses egoisticamente económicos.
Inventaram as armas de destruição maciça quando, por razões que só o petróleo sabe, decidiram atacar o Iraque. Meteram o mundo numa embrulhada de que ainda não conseguimos sair e que teve parte importante no descalabro em que presentemente nos encontramos. Construíram uma rede de espionagem comercial – a Echelon – para roubarem os segredos dos “aliados” europeus e, quando descobertos, alegaram, com candura e inocência, que tudo isto era em nome da sã concorrência. Inventaram assim o modo do eu posso fazer o que quiser e tu farás só o que me agradar. A isto chamaram justiça!
Dentro desta lógica querem agora impedir a divulgação dos documentos “Cablegate” pela Wikileaks, exigindo a prisão e o repatriamento, por terrorismo e traição, do seu mentor Julian Assange. Aqui, minha gente, apesar de habituado à prepotência americana, não consigo deixar de abrir a minha boca numa estupefacção sem limites.
Vejamos então:
Os documentos publicados no “site” estão a ser dados, regularmente, à luz por poderosos e tradicionais meios de informação. Alguns deles americanos e situados no seu território. Não me consta que a qualquer dos seus directores tenha sido passado mandato de captura, nem que as publicações tenham sido impedidas de circular. Mas a Wikileaks viu ser-lhe negado alojamento e congelados fundos. No entanto nem um nem outros estavam sob jurisdição americana. A acusação de traição é, no mínimo patética. A não ser que todos agora estejamos obrigados à nacionalidade americana, só para os deveres, como pode ser acusado de traição à pátria americana um homem que tem nacionalidade australiana? Que obrigação tenho eu, cidadão português, residente em Portugal, de respeitar as interdições do direito americano para americanos em terras da América? A inversa é verdadeira? Ah! Não é? Então está tudo dito e passem os senhores muito bem!
E a pressa subserviente com que a justiça inglesa actuou para a prisão de Assange baseada em duvidosas acusações? Ao que foi informado numa das acusadoras de abuso sexual terão sido identificada equívocas ligações à CIA. E que o não fora! Não é despiciendo, para bom julgador, lembrar-se que estas acusações são recorrentes. Aparecem quando são lançadas informações perturbadoras no “site”. São arquivadas quando o efeito desaparece, para de novo, mal novas informações sejam publicitadas serem prontamente agitadas. Muito conveniente, não vos parece? Não posso deixar de comparar esta pressa com os vagares da prisão e extradição do celebérrimo Vale e Azedo que, há quantos anos, se arrasta pelos tribunais deixando-o livre para continuar a cometer as barbaridades que lhe conhecemos. Viva a libérrima Inglaterra!
Arrepiante é no entanto a pretensão vigente no pedido de extradição de Assange para os Estados Unidos! A que propósito seria ela extraditado? Não é cidadão americano. Não cometeu qualquer crime em solo americano e sob alçada das suas leis. Não roubou os documentos (foram-lhe entregues) e os mesmos são de inegável interesse informativo e probatório sobre o tipo e apodrecimento das relações diplomáticas e políticas, bem como do degradado carácter moral desses seres que pretendem governar-nos e dirigir. São incomodativos? Lá isso são. Basta que se não tenha a consciência limpa e incomodarão mais que piolhos na cabeça de alguém sem mãos para se coçar. Este é verdadeiramente o problema. A opacidade permite a mais completa dominação. Há seres e coisas que a luz destrói. Nós estamos rodeados deles. No receio de verem-se a descoberto perdem as estribeiras e atropelam todas as leis, todos os valores que apregoam e, desvairados gritam: “liquide-se Assange”.
A resposta está a ser dada. O movimento suplantou o homem e, mesmo sem ele, continuará. A criação de “sites” espelho, o aparecimento espontâneo de acções contra que tenta coarctar o direito ao conhecimento estão em campo. Desta batalha, que não se pode separar da grande convulsão que agita o mundo, serão colhidos resultados. Se eles são a favor ou contra a liberdade e a dignificação do homem é coisa que ainda se verá. Por mim está escolhido o campo em que me baterei. Decida-se V.Ex.ª. de que lado está enquanto o tempo lhe der ainda essa possibilidade.
Finalmente uma palavra de compreensão para Obama. Tudo lhe corre mal. As boas intenções esbarram contra os maus interesses e ele, mesmo que queira, pouco pode fazer. Afinal ele é o presidente dos americanos. Destes americanos!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt