memórias XX - canto para a morte de bobby sands
I
disseram-me mesmo agora
aqui no café
que hoje cinco de maio
numa prisão da irlanda
tu morreste
em portugal o sol brilha intensamente
na espuma da bica
numa galáxia desenhada
dobram sinos
pela morte de um homem
que não conheci
no repente da memória
relembro outras dores
com nomes luminosos e aquáticos
e vejo-te cálido e tranquilo perto
de che guevara jesus cristo
pablo neruda garcia lorca
ou outros que morreram
com as dores de todos os homens
II
hoje aqui e a ti
ofereço à tua morte
a minha alma de irmão
na sombra que te cobriu
clamo a minha vingança
desejo que não descanses em paz
nem eu nem qualquer outro amante das coisas livres
enquanto não cair
o último dos tiranos
pouco importa que o vampiro feminino
que a burocracia marcará com o nome
maldito de margareth tombe
ou continue por tempo indefinido no
pressuposto do poder
na realidade que importância tem
que no dia da tua morte o exército inglês
avance sobre as pedras da tua pátria
que importará na verdade
que em cada hora numa qualquer
esquina incógnito
um outro patriota caia
no sangue da liberdade
pouco importa mesmo o passo apressado
com que a humanidade procura
o holocausto tu sabes bobby
o que tiver de acontecer acontecerá
e ninguém mesmo ninguém
por mais exércitos ou prisões
ou polícias que domine
poderá impedir para sempre
o caminho daqueles que não aceitam donos
e procuram nas coisas
a alma das canções
III
a tua morte entoa em nós
um hino de esperança
sabemos de novo que continua a haver homens
para quem a liberdade ressoa
como o brilho das estrelas
ou beijos em bocas
de amantes retornados
que fazer bobby da tua memória
que me aquece e incomoda
como liquidar a dívida para com
a tua morte contraída
só o poderei fazer semeando o sol
que hoje te foi negado
amando em todas as mulheres a amada
que no amanhã que não terás
te faria pegar numa guitarra
e imerso na sombra do luar
fazer fluir um tão imenso canto
que o oceano inquieto pensaria
ter já chegado o dia
da grande redenção
a ti o morto
neste momento levantamos obeliscos
na emoção de cada memória
mais não podemos fazer
que ofertar-tos acrescidos da miséria
das palavras que te digo
mas pensa um pouco
uma palavra não é só um som
uma grafia inscritos no papel
uma palavra
se animada por dentro
por um morto que não morre
é o aço e a água
a pedra e a cal
onde o alimento se encontra
e o momento acontece
em bodas de alegria
uma palavra
inventada na saudade
de um corpo início de viagem
é um solene contrato
entre o sangue e as veias o cérebro e o coração
uma palavra é um tributo
onde o oiro prevalece
sem o horripilante jogo
das fronteiras e uma
sentença de morte
para quem procura
a morte das palavras
uma palavra
é o que resta da vida
para todo o sempre
IV
por isso perdoa
por fracas as palavras
com as quais luto contra o esquecimento
e pretendem levantar o monumento
em que o teu nome perdure
e tu continues homem junto aos outros homens
um pouco mais distante é certo
porque prevaleces no âmago de cada um
acendendo o facho da revolta
para aquecer esse pedaço de vida
sonegado
V
foi há pouco que me disseram
que hoje cinco de maio
numa prisão da irlanda
à uma hora da manhã
quando a esperança se começa
a delinear nos lábios da alvorada
numa noite em que a lua
de vergonha não apareceu no céu
subitamente bobby me foste mais irmão
por isso eu estou nesta margem
entre a raiva e o choro
e a minha mão nervosa
traça o papel em signos restritos
na inominável relação que existe
entre o que deste e a relativa
comodidade desta revolta
em que me encontro instalado
por isto insisto nestas frases
e tento o poema
processo a chama onde possa arder
o meu pálido reflexo
do teu poema escrito
com o sangue generoso que te doaram
outros que passaram e como
cristo neruda ché ou garcia
sabem que neste instante
o caminho passou
por uma prisão na irlanda
onde pelo início do dia
ainda noite recolhida
em busca da liberdade um homem livre renascia
Barreiro, 5 de Maio de 1981
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