A mão que lhe dá o voto
Que, por inúmeras e consensuais razões podemos dizer estar esta sociedade doente de paranóia galopante, é facto dificilmente indesmentível. Culpa das tendências neoliberais imperantes na governação, da discórdia entre pragmática e ética, da dilaceração entre o local e o global. Agora, o que é mais difícil de compreender é que este estado de coisas se tenha apoderado do nosso governo, transformando a sua indiscutível legitimidade num exercício de declarações alucinadas de quem vê monstros onde o normal ser humano observa a simples consequência de decisões, por vezes correctas nos princípios gerais, mas feridas de autoritarismo míope, nebulosas, fora de tempo, descontextualizadas e sem que se encontrem justificações para os métodos utilizados.
Refiro-me, como já se percebeu, à primeira ronda de declarações apaixonadas do nosso primeiro e do inefável ministro Silva de ver, por todo o lado, em tudo o que é contestação política de medidas políticas, a mão diabólica do partido Comunista. Na verdade pode dizer-se que é o medo que tenho do meu adversário que o faz tão grande e omnipresente a meus olhos.
E o temor antecipado da maioria poderá ser verdadeiro se o bom senso e equidade não se sobrepuserem ao presente e tão estranho espírito “socialista” desta maioria absoluta.
Não porque os comunistas, ou outra qualquer oposição, sejam, no momento, um perigo real. Aliás, a desorientação reinante, favorecida pela mais longa depressão económica dos últimos anos, reflecte-se, não só no Governo, como na ausência de outras perspectivas credíveis, venham de onde vierem. Não representa este estado de coisas apenas a incompetência de quem governa ou se opõe, mas também a deriva de uma realidade ultrapassante das possibilidades de decisões a nível nacional.
No entanto, outras decisões são do restrito domínio doméstico.
Debrucemo-nos, levemente, sobre a questão da avaliação de desempenho de professores.
Tenho a imodéstia de pensar que sei alguma coisa sobre este assunto, derivado de dezenas de anos de experiência em avaliações profissionais. É certo que as fiz sempre no âmbito de empresas privadas e que, se me fosse posto o problema de pensar um sistema de avaliação para professores ver-me-ia, sinceramente, muito atrapalhado.
A avaliação de desempenho comporta vários fins. Um deles é conseguir apreciar o comportamento profissional, em dado período de tempo, de uma determinada pessoa. Para tal é necessário a construção de critérios objectivos e mensuráveis, bem como da respectiva medida. Parâmetros que podem ser mensurados com objectividade são, por exemplo, a assiduidade e a pontualidade. Outros que se podem, mediante descritivos sintéticos e correctos, tornar mensuráveis serão a quantidade e qualidade de trabalho, as atitudes de colaboração/integração no corpo profissional e os vários procedimentos para com o meio envolvente. Outro fim é o de estabelecer uma base de discussão mútua, com vista ao aperfeiçoamento e correcção de erros ou desvios, entre o avaliado e os seus avaliadores. Finalmente, após o percurso avaliativo pode estabelecer-se parâmetros de prémios/compensações e necessidades de formação.
Quando pensamos em professores para serem avaliados confrontamo-nos de imediato com a realidade de uma importante parte das suas tarefas serem dificilmente mensuráveis. O professor transmite conhecimentos – que poderão ser de alguma forma medidos – mas também educa cidadãos. Ora esta parte tão importante do seu trabalho só se poderá verificar plenamente muitos anos depois da saída da escola dos seus alunos. Como é que se medirá isto? Deixaremos, por miopia escolarenga, desincentivar os professores de uma tão importante função que, por muito esforço que custe, não se repercutirá, minimamente, no resultado da sua avaliação?
E a equidade? Como se conseguirá que a avaliação de um professor, numa determinada escola, por determinado avaliador, seja comparável a outras avaliações na mesma escola ou em escola diferente, com avaliadores distintos e perspectivas desiguais sobre a interpretação de cada um dos parâmetros propostos? Está isto pensado e resolvido? Não me parece e assim, só se chega à confusão nunca à justiça equiparativa. O que se pede é um sistema em que seja possível afirmar que alguém classificado com Bom no Barreiro é equiparado a outro qualquer, com a mesma classificação, em qualquer outra escola do país.
È portanto a avaliação de desempenho um instrumento de trabalho muito útil para a evolução dos trabalhadores, quando efectuada com seriedade, compreendida e aceite por todas as partes. A boa-fé e a confiança são as duas pernas em que este exercício se estriba. Faltando alguma delas o resultado é catastrófico por destrutivo em termos de relacionamento entre as parte.
Estas simples normas de bom senso faltaram ao ministério da educação. A resposta foi-lhe dada na rua pela impressionante marcha da indignação que cem mil docentes protagonizaram, com toda a “irrelevância” que a ministra, em reportagens televisivas subsequentes, lhe consignou. Como era de esperar de tal personalidade, a um mau trabalho seguiu-se o autismo impenitente. A vida é assim. Há pessoas que dê lá por onde der, trazem no bandulho todas as certezas do mundo e, por mais que a realidade lhe trespasse os olhos, apenas vêem o que lhes interessa ver.
A ministra que tentou apresentar os professores à opinião pública como madraços e incapazes, num piscar de olhos malandro para os piores sentimentos da turba, viu-se, deste modo, perante uma afirmação de dignidade pessoal e profissional que ela não pode entender.
Por isso foi ainda, se possível, mais fechada e prepotente e cortou todas as pontes possíveis para a resolução do problema. Mas fez mais! Quando instada a responder sobre a possibilidade da sua demissão afirmou claramente: - “eu não me demito!”.
Como para bom entendedor meia palavra basta eu entendi, naquela declaração, muito mais que o que ela desejaria que eu entendesse. Vi, que perante a enormidade do disparate, centrando-se no seu único e exclusivo querer, desafiava o primeiro-ministro a demiti-la. Sim, que ela, mesmo contestada pela classe docente em bloco, não faria como o ministro da saúde o qual, cedendo a possíveis pressões, contrariado embora, apresentou a carta de demissão que, provavelmente, lhe fora pedida. Ela não o faria. Só sairia com decisão comunicada pelo primeiro-ministro. A bola foi-lhe passada tão lepidamente como isto. Deve ser este o comportamento designado de solidariedade partidária e governativa.
O primeiro-ministro, tendo em conta os acontecimentos anteriores e estes, estaria completamente bloqueado para tomar qualquer decisão sobre os assuntos da educação. Estava preso por ter e não ter cão. No limite apenas lhe cabia, mesmo se a contragosto, apoiar a ministra. Ela aproveitou-se, completamente, deste estado de coisas.
No entanto, vindas de um PS ligado ou habitualmente consensual com as políticas do Governo, vozes credenciadas apareceram, nas ágoras televisivas, introduzindo um discurso morigerador apontando aberturas várias. E mesmo membros da equipa ministerial vieram a terreiro, na sequência, introduzir a “luz ao fundo do túnel”.
Quando, legitimamente, pensávamos que a lição de unidade e conquista de dignidade dos docentes, tinha sido apreendida e levada em conta eis senão, que a ministra vem de novo à televisão reafirmar as posições anteriores, desmentindo as aberturas anunciadas pelo seu secretário de estado, desdizendo as conversações mantidas com os sindicatos, reafirmando, do alto do seu Olimpo, “tudo ficará na mesma”.
Como bem se pode compreender não sendo os cem mil professores cem mil comunistas, muitos seriam votos contados do partido que lhe deu lugar na governação. Assim, diga ela o que disser, ainda que por questões tácticas não convenha ao nosso primeiro apeá-la do trono, a certeza com que fico é que só temos ministra a curto prazo. Porque, em 2009, há eleições e quem quer ser eleito não pode morder a mão que lhe dá o voto.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
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