Memórias 3 - EPITÁFIO PARA UMA RESSURREIÇÃO DE DOMINGO
Naqueles anos,sob a influência do existencialismo , escrevia assim:
Por acaso, hoje, foi domingo. Podia ter sido um outro dia, mas não foi. O domingo amanheceu silencioso, parece-me que até já isso e hábito. Como nada tinha para fazer, deixei-me estar na cama até me doer o corpo.
Gosto de ficar na quentura mole do regresso do sono, a sonhar quase na realidade, o mundo que me apetece, nas coisas que de antemão sei que não possuirei, porque são passado e o homem vive no presente.
Depois, quase sem dar por isso, chegara a noite. Com ela veio solidão a apertar-me dentro, nem sequer me deixando o orgulho de sentir-me só. Tive a tristeza a construir-me a noite, a intranquilizar-me, e a saturar-me de estar farto.
Olho para mim e pergunto o que faço e porque o faço. Não distingo objectivos. E tudo tão solitariamente material.
Durante os dias normais, o turbilhonar daquilo a que chamemos quotidiano faz-me divergir os pensamentos. Nestes dias, porém, o silêncio entra em mim duma maneira dolorosamente esquiva e as ausências tornam-se maiores. Tento enganar-me, dizendo que sou superior a tudo quanto possa acontecer-me. Sei que não o sou, mas terei que sê-lo.
Da soleira duma porta, iluminada pela luz pobre dum bairro de lata resmungava uma voz irada de mulher:
-Anda meu desgraçado, vai para a bebedeira. Porque terei eu casado com esta porcaria de homem? Deixa estar que, quando não tiver comer para os teus filhos, te ponho uma armadura tão grande que não entras na rua Augusta...
Cá para comigo monologuei que mais dia, menos dia, o homem estaria mesmo "empalitado", se é que não o estava já. Talvez um dia eles se tivessem amado, tivessem prometido mundos um ao outro. A vida levou-os aquilo. A miséria matou o amor e os estômagos vazios, pesam mais que uma alma cheia de ilusões.
Vi, como há pouco, aquele casal novo que se ria da chuva. As pessoas voltavam-se quando passavam, encolhiam os ombros ou sorriam. Para mim, no meio daquela multidão impessoal, eles eram uma promessa de frescura na aridez do meu deserto interior.
Este acontecimento deu-me para pensar. Do meu pessimismo veio-me, para eles, que tão confiados iam, uma pena quase eterna. Um dia acordariam do seu sonho de deuses. Ao olharem os seus andrajos humanos, iriam sentir-se bem mais pobres, infinitamente sofredores e desesperados.
Nós somos assim. A nossa natureza sociável, porque o é sem dúvida nenhuma, não nos permite viver muito tempo em contacto com alguém, sem que os mais variados choques psicológicos aconteçam. São sempre as ninharias que mais contam para criar desentendimentos irreparáveis. Um grande problema predispõe o homem para a grandeza. Abre-lhe a alma. Torna-o superior. A razão inversa acontece com os pequenos problemas. Isto leva-me a concluir, talvez precipitadamente, que o homem é um ser de extremos na luta por um terreno médio, que pessoalmente não posso conceber. Sinto essa posição como uma fuga à responsabilidade. Devemos ter o orgulho de enfrentar os nossos actos, de suportar-lhes as consequências. Somos nós quem vamos construindo o futuro. A vida não é como dizem algumas filosofias, uma linha recta, traçada quando nascemos, ou antes e acaba na morte ou mesmo depois. Essa linha do destino, a existir, tornaria estúpida qualquer tentativa de libertação qualquer tomada de posição, qualquer progresso.
Um acto torna-nos responsável, não só por ele, mas pelos que o seguem e, em consequência do anterior, aparecerão. Cada um deles dar-nos-á um número de caminhos diversos. Nos escolheremos aquele que o momento, a hereditariedade, as hormonas, o tempo, isto é, nós e sobretudo nós quisermos. Uma constante opção é o acto vida; acto principal duma carreira infindável de actos menores.
Divagando cheguei a casa. A minha casa é um quarto com uma janela pequena, que dá para uma miserável imitação de quintal. Moro ali agoniado e preso pela liberdade de um dos meus actos. Tudo o que lá vive dentro me agarra e tem um sentido tão próprio, que não sei se sou eu quem dá vida aos objectos, se eles a mim.
Na minha terra era quase feliz. A despreocupação era o meu lema e da vida ia retirando os pequenos prazeres, que nos fazem duvidar das pessoas que choram. Um dia, alguém, ou um sorriso, me fez pensar que devia ser mais no mundo. Esqueci-me de tudo e lancei-me na cidade grande, todo esperança, todo vontade, até que esse sorriso me faltou. Tenho sempre comigo o "nosso" último livro. "0 Mágico" de Somerset Maugham. A dedicatória, por irónica, faz-me sorrir. Não é que tenha sido ou seja essa a sua função, mas sim porque um acto tornou mentira as palavras que se disseram e o que entre nós se passou. Aquele livro encerra algumas delas e às vezes sorrir e uma forma diferente de chorar...
Lá fora deixara uma multidão embaraçada em impermeáveis e guarda-chuvas, a maldizer o tempo. Felizes ou infelizes? Criaturas que nada mais tinham, pelo menos aparentemente, a preocupá-las, que a presumível gripe.
Bah! Gente mesquinha - dizia-me num esforço de auto-consolação. A verdade é que me sentia bem pequeno e desamparado ao pé dessa gente vulgar.
Vulgar!!! É um termo com outro qualquer, a que nós demos um significado e que usamos para classificar o inclassificável. Acresce ainda, que nesta época em que toda a gente luta pela invulgaridade, o invulgar é mesmo ser-se beatificamente vulgar.
Como um relâmpago surgiu-me a ideia do que, em minha casa, faria numa noite destas. Por alguns momentos, ai de mim, saí da prisão conceitual da gravata domingueira a vi-me livre na terra dos meus sonhos.
Chovia! Por lá, também o tempo ia chorão - com tanta experiência atómica estragam o tempo, dizia a gente velha do meu sítio. Numa noite assim, é quase certo que ficaria em casa a ler, ouvindo a dança da chuva no tecto de telha-vã. Esmagaria o nariz nos vidros embaciados, para espreitar os vultos fugitivos, os guardas chuvas negros a brilharem sob a luz molhada das lâmpadas sonolentas. Quando já fosse tarde demais, talvez saísse sozinho, à procura nas ruas escorregadias, de um motivo para me andar a molhar-me, a uma hora tão tardia. Não faria nada de extraordinário, é certo, mas que são actos extraordinários mais que meros acasos? E a vida, que é mais que um desses acontecimentos.
Já não me sentia bem no quarto. Aliás, nunca me sinto completamente bem em algum lugar. Sinto que onde não estou, é que devia estar. Por isso, nunca estou no sítio certo.
Saí, talvez a procura de mim nas ruas escuras, nas ruas baças, à hora em que se vende nas ruas, amor de deve-haver, de tempo contado, de cheiro enjoativo a suor, momento de fêmeas e machos no esquecimento fácil das contas da vida.
O meu problema e de princípio e fim. Porque nasci? Para que nasci? É culpa minha não saber estas respostas? Nunca me deram nada a que me agarrasse para viver. Em cada momento me vejo a inventar amarras, que por fracas ou coincidência desastrosas soçobram. E fico outra vez à deriva. È certo que sempre fui capaz de inventar uma outra finalidade mais ou menos longa. A imaginação é que não dura sempre. Quantas vezes mais serei capaz de me inventar no universo? Terei eu razão nos meus problemas, ou as pessoas que sub-vivem sem preocupações de finalidade?
Passou por mim, a cantar, um bêbado. Vai aos bordos. Cada passo e um compêndio na arte do desequilíbrio. Será isso uma solução? Acho que não. A alienação, ainda que parcial, nunca o será, porque as soluções exigem coragem e vontade. As fugas não! No entanto estou convencido que nem tudo é ruim. A capacidade do ser-se feliz existe algures e em alguém. Só quem, como eu, pede tudo de tudo, se encontrara sem nada. Quem esbanja cedo, tarde lhe falta. Mas que posso eu fazer? O mundo e um campo de luta onde eu terei que impor a minha certeza, ou ser esmagado pela certeza dos outros. Sei que não passo de um indivíduo entre milhões. Ao mesmo tempo sou mais do que isso, porque sou eu e como eu, sou único. O que acontece comigo, acontece com os outros milhões. Uns duma maneira outros doutra, todos lutamos por uma meta mais longa. A luta humana acontece onde esteja um homem e uma mulher. Apesar disso, ninguém é feliz, ninguém pode ao menos dizer que se está a realizar. A felicidade só existe em escassos momentos. Mesmo assim, não passa de uma armadilha, porque após ela, vem o desengano, a dor dos espíritos e dos corpos e os homens ficam, cada vez mais, sozinhos. Quem sabe mesmo se é isto que justifica ainda o acto de viver.
A abstracção dos meus passos levou-me até um bar escuso. Sentei-me. Agarrei em papel e estas palavras começaram a surgir-me. Dentro em pouco irei parar. Já disse muito de nada e não vou perder mais tempo. Afinal nós somos uns mentirosos natos. Quanto do que eu disse não passa de uma representação teatral de mim, duma incapacidade, mais ou menos momentânea, para fazer qualquer coisa? Se calhar, amanhã, à luz do dia, as minhas opiniões serão outras. Quem é que se pode perceber?
Nas minhas mãos o colorido velho do “brandy” desfazia-se em vómitos de luz. Levantei-o aos olhos e engoli nele os restos do meu orgulho.
Foi como se um escarro me tivesse deslizado pela garganta…
Guiné, Teixeira Pinto 25/6/67
1 comentário:
Carlos, em Junho, na Guiné, e com guerra, só dá para o mau feitio.
Enviar um comentário