“Balha-bem”
Cansado do azedume provocado pelas contínuas observações sobre o estado do mundo, procurei nos arcanos da memória um tema de menor crispação. E veio-me à retentiva o “Balha-bem”. No entanto, para falar dele tenho, primeiro, de dissertar sobre o Sr. Sepúlveda, conterrâneo do nosso herói, mas que, possivelmente, nunca se apercebeu da sua humilde existência.
Ao escrever o seu nome salta-me à lembrança a imagem pequena, meio corcunda, de nariz adunco e desconformes pés, ataviado no eterno fato azul. O Sr. Sepúlveda era funcionário público no tempo em que ter um ordenado certo, casa no centro da urbe e contactos privilegiados com os poderes delegados, emprestava ao funcionário um ar de magnificência. Assumia o Sr. Sepúlveda a sua condição, para além do vestuário, num expressar-se hipercorrecto que o afastava do vulgo vingando-se dele o vulgo por desenfreada troça.
Assim, certo dia, instado por um polícia, novo na cidade, a identificar-se, foi pelo mesmo detido e acompanhado à esquadra, porque o guarda suspeitava que ele lhe faltara ao respeito quando lhe pediu a identificação. Foi o caso que, surpreso por ser abordado por autoridade menor, retorquiu à intimação:
- Saberá o Sr. Cívico que se dirige inopinada e abruptamente a um sujeito com foros de cidade em desmesurada altercância para com o seu direito de ininterrupta e continuada progressão no burgo onde reside em domus próprio?
E zumba! Assarapantado com tamanha eloquência lá foi o Sr. Sepúlveda, acompanhando o atónito, desconfiado e ofendido chui para a esquadra da cidade, onde, um espavorido chefe tratou de se desculpar e xeringou o polícia por prender tão destacado elemento da burguesia urbana, o qual, por funcionário judicial, não só tinha o direito de dar voz de prisão a qualquer pessoa como, das suas funções, muitos jeitinhos e facilidades colhiam eles, polícias, por boa vontade do ilustre citadino.
Por seu lado, o “Balha-bem”, adolescente, cigano e analfabeto era o oposto da pequena glória do Sr. Sepúlveda. Nunca soube o seu nome. “Balha-bem”, chegava. Recebera a alcunha por ser hábil com a gaita-de-beiços, onde tocava melodias ciganas que acompanhava com o seu sapateado, pretensamente andaluz, pelo qual, recebia nas tascas, uns cobres com que se ia governando. Era companhia assídua da malta estudante com quem gostava de conviver nas serenatas e nas farras que lhe sucediam. Liberalmente o grupo acolhia-o.
Tornou-se meu amigo porque, todas as manhãs, me aparecia pedindo que lhe emprestasse vinte e cinco tostões. Não era muito dinheiro mas quase dava para uma ida ao cinema. Por isso, na primeira vez, hesitei e logo ele pressuroso, com o seu palrar conspícuo entre o espanhol e o alentejano, me assegurou que à noite me pagava o numerário.
Efectivamente cumpriu. Mas, no dia seguinte, pela manhã, lá estava, de novo, a pedir o empréstimo. Sempre pagou e, durante muito tempo, todas as manhãs, pedia a mesma importância. Intrigado, perguntei-lhe um dia a razão desta conta-corrente. Tentou esquivar a resposta dizendo ser o segredo a alma do negócio, mas perante a possibilidade de não tornar a ter o abono lá me explicou que ia, todos os dias, a um armazém da cidade, comprar uma caixa de sabonetes. Retirava os invólucros e ia vende-los aos incautos como se fossem sabonetes espanhóis de contrabando. Admirado perguntei-lhe se o negócio era bom.
- Vai dando. Foi a sua resposta.
A junção destas duas personalidades tão ímpares deu-se numa tasca, agora restaurante de referência, onde a malta desembocava para beber umas imperiais e onde o Sr. Sepúlveda, Fernando Pessoa sem génio, diária, comedida e rigorosamente se embebedava com vinho tinto.
Propondo-lhe um dia o dono da cervejaria o consumo de uma santola, andando de fundos baixos e não querendo dar parte de fraco, o Sr. Sepúlveda olhou para o bicho, pegou-lhe, simulou que se tinha picado e disse, alto e bom som, para quem o queria ouvir:
- Maldita lagosta, jamais comerei deste abominável crustáceo!
O “Balha-bem”, presente no local e circunstância, não só quis ouvir como quis, igualmente, por admiração total, ficar seguidor incondicional do Sr. Sepúlveda.
Por isso, na tarde seguinte, aproximando-se do balcão, simulou ter-se picado na santola e, certo de ter audiência, gritou:
- Maldita crovina, jamais comerei deste abominável constâncio!
Foi, para ele, a glória imediata. Para nós, motivo de conversa por muitos e bons anos.
Os tempos passaram, cada um foi à sua vida e, regressado há pouco tempo da guerra das colónias, vindo a Lisboa para uma entrevista para um possível emprego vejo, em pleno Rossio, vestido com um impecável fato branco e um vistoso "borsalino" na cabeça, o meu amigo “Balha-bem”.
- Então, que tens feito? Não sabia que estavas por Lisboa.
Foi mesmo um sorriso feliz que lhe vi no rosto.
-Não morreste na guerra, provocou!
-Como se pode ver, não. Parece não estares mal na vida.
- Vem ali beber uma cerveja. Pago eu, disse vitorioso.
Recompondo a simetria no mundo, podendo pagar agora o que eu sempre lhe pagara, lá me contou que viera para Lisboa dançar num clube nocturno. Mas aquilo era pouco para ele. Começou a perceber que o seu ar cigano não era indiferente a algumas estrangeiras que passavam pelo clube. Assim encetou um outro acto na sua vida:
- Agora sou puto.
- Puto??!!
- Sim, as gajas pagam-me para eu… e largou uma bojarda das antigas.
Engasgado só me ocorreu perguntar se o negócio era bom.
- Vai dando. Foi a resposta.
Pagou as cervejas, sorriu e com o seu fato impecavelmente branco desapareceu da minha vida.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/
2 comentários:
O Sr. Cunha apreciaria esta prosa, estou certo.
Parabéns e um grande abraço.
João Valadão (do ramal de Évora)
Viva João:
Há quantos anos não falamos. Como vai a tua vida?
Apesar de trocar os nomes apanhaste bem o Sr. Cunha. Em conversas com o Kira levantámos mais algumas passagens interessantes relacionadas com as personagens da crónica. Com esse material, vou, um dia destes, transformá-la num conto.
Gostaria de te reencontar um dia que vá a Évora.
Um grande abraço
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