Lamento angustiado de Belegário descrendo da justiça dos pequenos casos
Ele, o Belegário, está amargurado e descrente. Decorre-lhe a angústia de ver a sua cruzada pela cidadania destruída pelo comportamento da Justiça, descrente porque se sente injustiçado em pedido feito, pelos meios próprios, às instâncias julgadoras da nossa sociedade.
Eis, na sua simplicidade, a causa próxima do lamento do meu amigo:
Corriam os idos do glorioso ano de 2004, o país usufruía o prazer milionário dos seus novos estádio, as bandeiras nacionais acompanhavam o ritmo alucinante dos progressos da nossa Selecção e Scolari, a ser português, poderia, caso o quisesse, ganhar eleições para a presidência da República.
Numa noite quente desse verão, cinco jovens saíram de um café onde assistiram a mais uma fulgurante vitória da Selecção. Entusiasmado pelas jogadas dos seus ídolos, um deles, demonstra, numa lata de refrigerante, o pontapé fulminante de um dos nossos rematadores.
Na emoção do momento a lata rola pelo alcatrão e, impudica, atravessa a rua enquanto o grupo quedava o passo e a emoção na paragem onde ficaram aguardando o autocarro que os transportaria para o centro da cidade.
É nesse instante que, de uma casa em frente, sai um homem, de calções e em tronco nu, olhando inquisitoriamente para um jipe parado junto à morada, agarrando na lata chutada, resmoneando ameaças para o grupo sentado, no murete de fronte, esperando o autocarro.
Pouco depois junta-se-lhe a mulher e, avançando para os jovens, de forma ameaçadora, invectiva-os agressivamente acusando-os de terem lançado “uma bomba” para a sua casa. O comportamento dele e da mulher visava nitidamente conseguir uma reacção violenta de algum dos jovens.
É aqui importante informar que, na perna dos calções, sustentado pelo elástico da cinta, emergia, bem visível, a coronha de uma pistola.
Resistiram com serenidade, os jovens, às ameaças e provocações ficando a aguardar pela polícia, entretanto chamada.
Chegada a patrulha, inicialmente pouco simpática para com o grupo, ouviu, como lhe competia, as partes. Pesquisaram, cheiraram a lata e na evidência de não haver odores de pólvora nem vestígios de qualquer rebentamento, alteraram o seu relacionamento para com os mancebos e informaram-nos de que tinham um prazo de seis meses para apresentarem queixa contra o provocador.
Neste momento é curial ouvir o Belegário.
- O meu sobrinho Filipe fazia parte do grupo e eu sei que ele é rapaz educado e cordato, bom estudante e excelente desportista, respeitador de pessoas e coisas. Enfim, um jovem com valores.
Conhecia vagamente os restantes rapazes mas, tanto quanto podia afirmar, não seriam de muito distinto comportamento do reconhecido no Filipe. Por isso, ele, Belegário, ardente defensor dos direitos cívicos pensava que o comportamento do homem era altamente atentatório do direito à liberdade e segurança dos cidadãos deste país e que tal atitude deveria ser sancionada.
- Com gente desta – rematava – vá lá alguém estar tranquilo quando os moços saem para um encontro com os amigos…
Assim, matutou seria esta uma boa ocasião para dar uma lição de civilidade de dois sentidos. Ao Filipe ensinaria a lutar pelos seus direitos, ao exaltado recomendaria uma abordagem mais consentânea dos seus concidadãos e ensinaria a não transportar uma arma letal para um confronto, com o risco sério de um descambar de situações potencialmente possibilitadoras de tragédia.
Por isso insistiu com o Filipe para que apresentasse queixa. Inicialmente reticente, após contactar com o advogado que o Belegário lhe indicou, decidiu avançar para a Justiça como forma de demonstrar o seu apego às normas de sã vivência democrática.
Com estranheza do advogado o processo arrastou-se no tempo e, o Filipe, constituído assistente, foi, pelo menos uma vez em cada ano de duração, chamado a prestar o mesmo depoimento. Dizia o advogado, espantado, que mais parecia ser o Filipe o acusado e que lhe parecia igualmente estar a estabelecer-se uma qualquer forma de protecção em relação ao arguido. Não é normal, exclamava!
Tanto que não era que, ao fim de quatro anos, o Ministério Público decidiu que não havia matéria para prosseguir pelo que mandava arquivar o caso.
Nem o Filipe, nem o Belegário, nem o advogado queriam acreditar em semelhante desconchavo. Então um cidadão é retido na sua deslocação, é ofendido, acusado de bombista, desafiado por atitudes, por um homem armado, para uma confrontação e não há matéria para acusação? Será necessário que o energúmeno abata um dia um passante para então ser considerado como perigoso o seu comportamento? Alguma coisa não cheirava bem neste caso.
Consequentemente o advogado não aceitou a decisão e sugeriu que se avançasse para um processo instrutório. Forte na sua indignada razão o Filipe anuiu à sugestão. Cria ainda na capacidade das instituições para dirimir com equilíbrio as dissensões criadas no tecido social. Mas qual quê! Passados meses o Tribunal, na sequência da decisão do Ministério Público, vem anunciar que nada existe na situação que possa ser considerado – pasme-se - matéria para deduzir uma acusação.
Para o Belegário isto foi o princípio de uma angústia profunda. É que, ao contrário do que ele pretendia, o caso, em vez de servir como exemplo para reforçar o sentimento de cidadania do Filipe, teve, precisamente, o efeito contrário. Hoje o Filipe, cansado das incómodas deslocações, repetidas até à náusea, para prestar declarações, não pretendendo do arguido nada mais que um pedido formal de desculpas, aborrecido pelo incómoda que causou às testemunhas, incomodado pelo pagamento que terá de fazer ao tribunal e advogado, chegou à conclusão que nunca mais, a uma agressão, responderá com a calma e o recurso às instituições. Forte nos seus vinte anos e na sua compleição física começa a convencer-se que a melhor defesa será o domínio físico e imediato do adversário. Ele fará, e no momento, a sua própria justiça.
Esta é, na verdade, a causa profunda da angústia do Belegário. De qualquer modo, procurando uma leve centelha de esperança, ainda pergunta:
- Esta decisão não terá alguma coisa a ver com o facto de sabermos agora que o arguido faz parte das forças de segurança…?
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/
2 comentários:
AQUI ESTOU DE PASSAGEM PARA TE DAR UM ABRAÇÃO AMIGO E OS PARABÉNS PELO BELO BLOG QUE AQUI APRESENTAS.
DO REINO DO SIÃO COM AMIZADE TÓI
Viva Toi:
Vou acimoanhando as tuas andanças através do teu blogue. Só não digo nada porque não há local para comentários no teu blogue. É uma opção tua?
Agradeço os cumprimentos e a amizade e vou-te lendo e vendo.
Um abrço do amigo de sempre
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