Downshifters
John, rico banqueiro americano, passava, há muitos anos, férias anuais na Ilha de Maui, no arquipélago do Havai. No decorrer desses anos conheceu um pescador, de nome Mauna, de quem se foi tornando amigo. Conversavam descontraidamente ao Sol, deitados nas redes suspensas entre palmeiras vizinhas, discorrendo sobre a vida, as mulheres, as bebidas e outros prazeres que a amena temperatura e o relaxamento da boa vida proporcionavam.
Depois de muitas férias passadas, na confiança adquirida nos aprazíveis conciliábulos, um dia, cuidadosamente, John disse a Mauna:
- Meu caro amigo sabe como o estimo, o prazer que tenho em encontrá-lo aqui todos os anos e como me é agradável passarmos este tempo maravilhoso bebendo e preguiçando no calor da praia. Deixe-me no entanto, e não se ofenda com isto, dizer-lhe da minha estranheza pela falta de ambição que revela. Tenho reparado que o amigo, consoante a sorte das marés, leva o seu barquinho para o mar, deita as redes, regressa à praia e, passadas umas horas, torna ao mar para recolher a rede. Entrega o pescado na lota e regressa à praia.
- É verdade, returque Mauna, é essa a minha vida.
- Pois é por isso que penso haver em si uma notória falta de ambição.
- É possível, mas porque é que diz isso?
- Bem, parece-me que não utiliza ao máximo as suas potencialidades bem como as deste local. Com o tempo que lhe sobra dessa única ocupação diária bem podia comprar um equipamento de mergulho e ir, entretanto, caçar umas lagostas para aumentar o seu rendimento.
- Verdade que sim, e o que faria com o rendimento adicional?
-Ora, homem, aforrava e quando fosse suficiente comprava um novo barco. Entregava-o ao seu filho mais velho e, produtos reunidos, você ficaria bastante mais rico.
- Tem toda a razão… e depois de ficar mais rico o que faria com esse dinheiro?
- Comprava outro barco, entregava-o ao filho seguinte e triplicaria o seu rendimento. O capital acumulado, os juros e um empréstimo bancário, possibilitar-lhe-iam adquirir uma traineira de pesca longínqua.
- Está bem visto, sim senhor. E depois?
- Com um pouco de sorte iria aumentando a frota e poderia vir a ser um potentado das pescas e quem sabe se um armador de nível internacional.
- Tem toda a razão o meu amigo. Quando fosse um armador de nível internacional, faria o quê?
- Ora então, poderia gozar um rico mês de férias, passá-lo sem nenhuma preocupação numa bela ilha como esta, com o único cuidado de tirar o melhor aproveitamento do seu tempo de lazer e sol.
- O amigo não deixa de ter razão mas, se não reparou chamo-lhe a atenção para que, sem tantos trabalhos, ser precisamente isso o que faço, todos os dias, desde há mais de cinquenta anos.
A história não nos diz qual a resposta do banqueiro, nem tal é, em absoluto, necessário para os nossos propósitos. O que fica claro é a existência de dois diferentes modos de encarar o sucesso e a vida, de duas filosofias radicalmente opostas, degladiando-se no palco mundial.
A sociedade moderna impõe ritmos de mudança rápidos e muitas vezes espúrios. As palavras mágicas actuais são acumulação e inovação, tendo esta última perdido o sentido inicial de alterações essenciais para a melhoria de objectos e utilizações e representando apenas a pele com que as empresas, envolvidas numa luta de morte pelo domínio do mercado e pela maximização do lucro, tentam diferenciar o mesmo produto com roupagem diversa, através de uma trama de mentiras publicitárias visando arregimentar o maior número de consumidores, independentemente da necessidade do produto ou da real capacidade de satisfação do utilizador. No entanto isto é apenas a superfície da torrente. É que para obter o chamado sucesso torna-se necessário alterar os valores de convivência social. Deste modo o Ser cede lugar ao Ter e esta inversão modifica profundamente os comportamentos e relacionamentos sociais.
A inveja, a frustração, o egoísmo tornam-se os valores fundamentais da sociedade. Os meios de comunicação social vendem, “ad nauseam”, a imagem de gente bem-sucedida, vidas paradisíacas, tudo apenas pela obtenção dos produtos Y, da viatura Z, da casa Alfa. As pessoas, muito lá no fundo, acreditam e constroem a esperança em espuma de vento. Mas como todos sabemos nem as promessas estão ao colher da mão, nem as minorias que as obtém, tiram delas a satisfação esperada e prometida. No entanto, todos os dias, toda a gente se atola um pouco mais na dívida, no fossar em trabalhos excessivos e desumanizados que levam ao total domínio da pessoa, a qual, sem tempo para reflectir na sua condição, vai perdendo as referências humanas e conviviais, desinteressa-se da coisa pública, vê em cada vizinho um adversário que urge ultrapassar com mais dez centímetros de comprimento de carro, mais cinco metros de jardim na vivenda, mais umas férias, cem quilómetros mais longe, escondendo o empenhamento financeiro contraído e ficando na dependência absoluta de quem gere os créditos, diminuindo de forma absoluta a sua liberdade de escolha.
Contra este estado de coisas, algumas minorias esclarecidas, desfrutando de uma segurança económica que lhe permite fazer estas opções, decidiram que ter mais tempo livre, mesmo que tal signifique uma diminuição de disponibilidades monetárias, é preferível a continuar na corrida insana de, através da posse, ostentar um estatuto de supremacia sobre os outros, que a nada de útil ou positivo conduz São estas pessoas, raras por enquanto, que são denominadas “downshifters”.
A sua atitude é profundamente racional e visa dar respostas globais à degradação das relações sociais e a fenómenos mais vastos no campo ambiental. No seu limite tenderiam a destruir completamente, por contenção, o sistema maximizador capitalista, a tornar efectiva e durável a preservação ecológica e a avançar para uma redistribuição mais equitativa dos recursos existentes.
Podemos considerar que é utópica e franciscana esta forma de vida, que nem todos os que a iniciam conseguem mantê-la e que múltiplos desvios podem sempre reconduzi-los à lógica dominante. Mas, também não podemos deixar de pensar que muitos movimentos alteradores da face do mundo começaram de maneira quase apagada e foram, muitas vezes, considerados caricatos pelos modos dominantes. A lógica profunda que leva a trocar maior prosperidade económica por mais tempo disponível é uma coerência intrínseca de defesa e valorização da vida. Só por isso deverá ser tida na devida conta.
Como penso que o Mauna da nossa história conseguiu demonstrar, deveremos distinguir claramente entre desejos e necessidades, entre o fundamental e o acessório e fazer as escolhas correctas. Até porque, como dizia S. Francisco de Assis, não é o homem que possui os objectos, mas sim os objectos que possuem o homem.
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Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
1 comentário:
grande MAuna! a mudança é necessária, chega de ovelhismo, seres humanos ditos inteligentes mas que nada mais são que representação do pensar de outros. Continue o excelente trabalho de despertar consciencias.
Abraço
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