O voo do milhafre
No verão, quando o calor tórrido do Alentejo amodorra corpos e almas, no cimo do céu, pairando com olhar penetrante, o milhafre observa a terra em baixo. Perscruta qualquer movimento. Quando o detecta, fecha as asas e, como bólide, cai sobre o alvo. É assim que a proliferação de roedores é mantida em níveis aceitáveis. Sem a vigilância destas aves, os cereais seriam destruídos e a fome espalhar-se-ia pela terra. Também, na sociedade, hoje é necessário que os milhafres voem e destruam os roazes minadores do campo do poder, ameaçadores de destruição de tudo quanto são valores e ética, substituídos pelo xico-espertimo mais soez.
Cá vai este voo do meu milhafre!
1 – O nosso primeiro-ministro bem podia empandeirar alguns dos seus amigos, ou sequazes, ou seguidores. A sua companhia não lhe faz lá muito bem e potenciam os mais negativos traços da sua personalidade. Mal tapados ainda, num limbo de não esclarecimento, casos como os do diploma, das casas e do relatório sobre educação, surgem agora notícias alarmantes de pressões sobre o Ministério Público para proceder ao arquivamento do processo Freeport. Se alguma coisa pudesse prejudicar ainda mais o perfil de José Sócrates, seria juntar mais um “arquivanço” - e em caso de tamanha importância – às conspícuas ocultações já acontecidas nos casos acima lembrados. Amigo que queira favorecer o seu senhor de tal maneira, presta-lhe um muito mau serviço, contribuindo apenas para aumentar o lamaçal das coisas por esclarecer. Vale a pena relembrar o rifão “com amigos destes não precisa de inimigos”.
Se alguma coisa pode sair de são neste negócio malcheiroso é o apuramento objectivo da verdade dos acontecimentos. Sócrates só poderá livrar-se de mais este labéu de desconfiança, vindo a terreiro desautorizar tais amigos, exigindo o aprofundamento e esclarecimento pleno da ocorrência e do papel de cada autor no desenvolvimento desta tragicomédia. Caso contrário a imagem do primeiro-ministro ficará indelevelmente manchada pela desconfiança, com resultados possivelmente calamitosos na sua carreira política e, para o PS, no desfecho das próximas eleições.
2 – O Bispo de Viseu está em rota de colisão com a sua hierarquia, desde o colégio de bispos até à Santa Sé. Primeiro foi a correcção pertinente que ousou fazer às tristes palavras de Bento XVI quando, nos Camarões, teve a infeliz ideia de perorar sobre o preservativo e a Sida. Sempre me espantou como é que um grupo de assumidos celibatários constantemente se achou com conhecimentos e direito de opinar, de cátedra, em relação a coisas que, presumivelmente, não têm qualquer experiência: sexo e família. Fico sempre com a sensação de que ou são fala-barato ou nos andam a enganar há muito tempo. De qualquer modo, tendo em conta declarações do sibilante cardeal da congregação dos santos, Saraiva Martins, a rolha já foi imposta, a toda a igreja, com um autoritário “chega de pareceres”. Lá me vem à memória, não sei porquê, com um cheirinho a fogueiras, Giordano Bruno e Galileo.
É melhor deixar que os africanos morram com sida que controverter os dizeres papais. Pois que representa a morte de alguns milhares de desconhecidos contra a defesa intransigente da doutrina do papa que, como sabemos, em matéria de fé faz lei e nunca se engana.
Nem com Darwin!
No entanto o Bispo que se precate. A juntar à heresia da camisinha arriscou-se a defender o divórcio em caso de violência doméstica. Tem a minha admiração mas penso que não lhe vai servir de nada face ao ostracismo a que está a sujeitar-se. Nestas coisas a igreja é mais madrasta do que mãe e exige o cego princípio da obediência em qualquer situação e contra qualquer racionalidade.
3 – O que poderia ser surpreendente, mas infelizmente já não é tal, é a nomeação para uma empresa intermunicipal, de um senhor Domingos Névoa, conhecido gestor da Bragaparques, condenado por tentativa de corrupção do Vereador Sá Fernandes. É o regime de fartar vilanagem. Tudo é permitido desde que traga enriquecimento, mesmo que sem fímbria de honestidade. Fala-nos da sua aceitação a pequena multa a que foi sujeito e a falta de moral que é esta escolha. Não há nos negócios gente decente? É evidente que há, mas são preteridos e trocados por pessoas sem ética, sabe-se lá porquê. Por mais voltas que dê ao bestunto não consigo vislumbrar a razão de tais coisas e escolhas. E da lembradura saltam-me outros interessantes personagens, tais Ferreira Torres, agraciado com uma absolvição por falta de provas, Fátima Felgueiras, festejando uma condenação menor face às prevaricações e Isaltino Morais a tripudiar com o tribunal, do alto da sua suficiência, considerando que as acções ilegais praticadas não têm importância nenhuma porque a maioria as comete. Boa moral, senhor de Morais. Nem sequer é capaz de pensar que a ilegalidade é ainda mais censurável em quem ocupa lugares públicos. Mas não faz mal, o povo gosta e, para o sabermos basta verificar que se estes abencerragens concorrerem a eleições serão sem dúvida – e já foram – premiados com vitória certa. Se estivéssemos no Reino da Dinamarca diria que, entre nós, alguma coisa vai podre.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
1 comentário:
Carlos
TErás reparado que a reacção do Primeiro Ministro não foi a que te parece que lhe convém. Aliás, eu não sei se ele sabe que isso lhe convém, porque há procedimentos que viciam.
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