Os degraus de Clarisse
O despertador zuniu. O braço lento silenciou-o. Seguiu-se o zumbido do telemóvel. São horas.!
Clarisse procurou acordar o corpo, na aparência, há muito desperto, obsessivamente entretido em listagens de tarefas. Habituado a tal exercício, o cérebro teimava em não se desligar. Foi necessário mobilizar toda a energia anímica para arrastar a perna para fora do colchão, soerguer-se lentamente.
Tem de ser - pensou - e concluiu o gigantesco empreendimento. Levantar-se, após 3 a 4 horas de sono. Já lá iam uns meses nisto … pois, ocupada em longas noites de correcção de exercícios, elaboração de fichas, relatórios, critérios de avaliação, .. a panóplia habitual da docência nos tempos que correm. Nada que pudesse evitar, tudo obrigatório … (esta a firme resposta dada ao marido que lhe pedia pausa, pausa…)
Luz acesa. Olhou-se. A imagem devolvida não merecia parança. O rosto empalidecido, sem fulgor no olhar contornado a negro, não lhe parecia o seu. E se o era, não queria vê-lo. Deter-se nele exigia uma reflexão sobre o estado real da sua saúde, da sua qualidade de vida. Não, não, filosofias a esta hora não! Lá se ia passando o tempo e os relógios não se compadecem com metafísicas. Vamos lá ao plano de emergência: banho quente, escaldando a rigidez dos membros, água gelada afastando a neblina mental, corrida ao roupeiro - bendita moda das calças de ganga. É só trocar a camisola. O casaco pode ser o mesmo. É certo que ando embrulhada nele há uma semana… e depois? Tenho frio… preciso de comprar umas camisolas, um casaco … amanhã. Hoje não tenho tempo. O dia está ocupado com reuniões. . -, iogurte engolido, hesitação sobre o que tragar de seguida – sim, claro, o multi-vitamínico antistresse; o café adiado para o intervalo das 10h, ou, com sorte, para daqui a pouco, se chegar à distância de uma bica na pastelaria.
Decisão tomada, pasta numa mão, chaves do carro no bolso, as de casa na mão já resvalam para o bolso do casaco … (claro que não as posso perder pela segunda vez), bolsa a tiracolo, pasta do portátil ao ombro é tempo de se atirar para o dia fresco. Um espasmo atravessou célere o corpo.
Ai as costas! A fisiatra mata-me. Ou mato-me eu neste ar composto de vendedor ambulante. Anima-te! É só não esquecer o projector, ir buscá-lo e pendurar ao ombro mais esse objecto. Não posso defraudar os miúdos, empenharam-se tanto!
A figura masculina emergiu do corredor, interrompendo a fuga para a rua. Susteve o passo, parada. Todo o seu corpo sugeria movimento, impaciência…
– Olá estás bom, até logo - Um beijo aflorado, só pensado, que a mente estava noutro espaço e tempo.
- Não dormiste outra vez, retrucou a voz masculina.
- Pois que queres, há trabalho para fazer. Se não me despacho… agora não tenho tempo. Adeus.E lançou-se para o patamar, ouvindo o ríspido «Adeus.» e o que se seguiu: Pensa que um dia não terás de todo tempo. Para ti, para nós, para os miúdos. Ah, esqueceste-te de levar o teu pai ao médico… levei-o eu, telefonou-me aflito
Clarisse autómato, Clarisse de biorritmo alterado, Clarisse em ansiedade permanente nada ouve. Vai pensando na lista de tarefas do dia de trabalho, da semana de trabalho. Alheia a tudo, já está finalmente no carro… e em movimento! UF. Chego a horas de ir buscar o projector e talvez de respirar um pouco.
Olhar distraído pára no retrovisor. Quem és tu que acumulas papéis, funções, despachas obrigações e já te tornaste mãe administrativa, burocrata que delega?
O rodar ( «ó rodas, ó engrenagens r-r-r-r-r-r-r eterno! », ó meu A. Campos!) despertou-a em sobressalto:
os miúdos… não combinaram quem vai buscar o Diogo. O Miguelito fica com a minha mãe depois da escola. Bolas e agora? No intervalo telefono. Como ontem dormiram em casa dos meus pais, nem me lembrei deles… Deus! Não me lembrei dos meus filhos!
Por instantes aflorou furtiva a lágrima. Mágoa acumulada, sobrepondo-se à tralha carregada, Clarisse ainda consegue ligar o telemóvel. Ninguém atende – os meus filhos…, o meu pai … O Tó Miguel tem razão, em nome do quê, de quem pareço uma barata tonta?
8.15 da manhã, passagem pelo portão da escola. Alguns adolescentes caminham sonolentamente. Olhares e sorrisos cruzados. A professora Clarisse gosta de lhes dar uma palavra matinal prazenteira. Já não tem dores, nem pesos na consciência, nem filhos esquecidos, nem pais a suplicar atenção, nem marido relegado.
Stôra requisitou o projector? Hoje mostramos os trabalhos não é? E tem colunas boas? Fizemos um vídeo.
Claro que sim. Vou buscá-lo. Até já.
As vozes luminosas e sorridentes, os passos ensonados em busca do acordar afastam-se, enquanto Clarisse sobe os degraus da escola. Acelerada, acrescenta ao seu “visual” mais um adorno – o projector. E lá vai:
… sobe que sobe
Sobe as escadas
Clarisse é nova
Rosto bonito
Empalidecido
Clarisse pára!
Ai, o livro de ponto! – mais um fardo
E lá vai Clarisse
Anda que anda
Até ao bloco.
Recebe a chave da sala. Hesita sobre o modo de ordenar tantos objectos. Mas começa a escalar:
Sobe que sobe
Arrastando-se…
E nesse instante uma ou duas vozes solidárias, dizem:
- Stôra, nós ajudamos.
- Obrigada meninos.
É deles o tempo até ao final do dia. O sorriso de Clarisse floresce de novo, a atenção dada a cada turma, a cada grupo de alunos não pode diminuir. Clarisse esquece o Miguelito, o pai, a mãe, o marido.
O júbilo da aula, as vozes acesas, implicadas em debate de ideias sabem bem a Clarisse. Como fazer de modo diferente?
13.15 . Passou tão depressa. Tenho de almoçar qualquer coisa rápida … E arruma o portátil, o projector, os cabos, os seus cadernos, as folhas de registo sobre os trabalhos apresentados…
Inicia a descida, após o fecho da sala ( há muito que a revoada de adolescentes se foi… agora menos solidários pois há o almoço e as aulas da tarde), transportando a parafernália indispensável àquela aula. Seria simples se o choque tecnológico fosse real e as salas todas tivessem equipamento pronto a usar. Consola-se, todavia, Por cá até temos bastante material, o pior é que não chega…
O riso, as vozes juvenis fizeram-na pensar nos seus meninos – não os alunos, os seus filhos.
Correu a entregar, projector, depositar livro de ponto, desembaraçar-se do seu portátil. Sentou-se. Ligou o Tmóvel.
- sim sou eu. Não consegui. Trabalhei outra vez até às três…. Pois sai muito tarde …. Como tinhas os meninos…. O Miguelito?.... O quê ? tem febre? Foi para a creche? Sim? Com benhuron… pois… pediatra … sim… sim vou marcar. Beijinhos até logo.Consultou a agenda antes de telefonar para o infantário. Duas reuniões: uma de conselho de turma e outra de Departamento. Lá para as 19 horas estou despachada. Rápida pensou nos sogros. Não, a mãe do Tó Miguel está doente… O meu pai vai buscar o Diogo, eu vou buscar o Miguelito e levo-o ao pediatra.
14.30 – tosta mista e iogurte. Uma peça de fruta. Café para arrebitar.
De novo, planeou o dia. Ligou para o infantário Sim era melhor levar o menino ao médico. Cheio de febre e vómitos! Bolas, Bolas! O Tó Miguel hoje tem reuniões até tarde. Sim vou buscá-lo.
15.00
– Não te esqueças que temos reunião de subnível para planificar e afinar as actividades do PAA . Não te esqueceste? Olha e trouxeste o PEE? Tem de bater certo com as metas. É para fazer antes da reunião de Departamento.Agradeceu vivamente à colega ( …. há almas caridosas que recordam.. não fora esta cadeia…, com tanta reunião esquecíamo-nos de metade)
- Claro que não. Tenho o Miguelito doente mas resolvo isso ( por dentro renascia a zelosa profissional e desmoronava-se a mãe… Gizava um plano. Sim ia buscar o Miguelito, mas seria a sua mãe a levá-lo ao médico)
A colega afastou-se, comentando o chato que aquilo era. Chato? Já é assim que nós falamos do que nos é mais querido ( afastou o pensamento… ia conduzi-la ao incumprimento)
Mãe, sou eu, … sim já marquei o pediatra . Tenho reuniões não posso faltar. Levas o Miguelito ao médico. Depois vou buscar-vos. A consulta é às 17.30. Como o médico demora sempre….
Pois é…. Vou buscá-lo agora. Até já.
Corre Clarisse, corre que corre.
Leva o menino triste, escaldando. Mima-o, cumula-o de beijos. Miguel não reage. Clarisse explica-lhe o planeamento do dia, acrescentando, manipuladoramente, tu sabes que a mãe tem de trabalhar para termos dinheiro, e a avó gosta muito de ti. Avó é mãe duas vezes.
Miguel deixa-se levar. Calado roda nas mãos um papel que abandona no banco, ao lado do saco da mãe quando Clarisse o deposita em casa da avó.
A rapidez dos beijos, as palavras de carinho fugitivas, as combinações céleres, tão despojadas de afecto, preenchem o coração de Clarisse enquanto se dirige ao carro.
Que fazer??
16.15. Abriu a porta traseira do carro e atirou para lá o saco. Rumou para a escola. Estacionou.
Abriu a porta traseira do carro, novamente. Colado ao saco o papel que Miguelito abandonara. Era um desenho: no centro, diante do computador, rodeada de livros a mãe. Ele, na gigantesca atitude acusatória, colocara-se muito pequenino à entrada do escritório. Entre ele a mãe, ocultada pelos papéis, nada. Um vazio. De costas, a mãe. De frente o pequenito de três anos, representando-se insignificante. Pelo meio nada. O espaço de desolação bem visível!
Clarisse tremeu.
Fernanda Afonso
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
2 comentários:
Amiga Fernanda,
Adorei a tua escrita, mas minha consciência ficou ainda mais pesada. Meus dois filhos naturais não merecem ser substituídos por 130 adoptivos. Temos de acreditar que nossos alunos ainda têm pais que com eles conversam ao final do dia, nós só temos trabalho e mais trabalho e muitas consultas na Psicóloga. Já não vale a pena. Teremos de parar. Nosso corpo gasto assim nos manda. Façamos-lhe a vontade. Nossa consciência também agradece,
bjs, Carol
Sem dúvida... é mesmo a minha intenção sublinhar a solidão deles ..., não acentuar as culpas que só fazem mal.
Mas, apesar de tudo, hoje ouvi de dois alunos teus que estiveram connosco na semana da leitura elogios a teu respeito, pela dinâmica de projectos. Lá está o que a nossa ministra não sabe, ou não quer saber...!
Contudo, tens razão, devemos dar voz à nossa consciência e olhar pelos nossos e por nós.
Bj
Fernanda
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