Maria Vitória
Todas as semanas vou ao peixe. É um gosto que tenho desde pequeno. Já criança adorava ver em cima das bancas os pequenos e grandes seres do mar. Cada um representava uma aventura e um mistério trazidos do grande oceano à seca planície. Nessa viagem a minha imaginação galopava frenética ao encontro de caravelas e atlântidas perdidas. Por isso, desde sempre, gostei de ir ao peixe.
Só ontem não!
Quando cheguei à banca já ela lá estava. Pequenina, velha, metida num casaquinho de malha que já fora azul escuro, sendo agora só borbotos e que na sua pobreza parecia ser um ténue escudo contra o mundo. Falava com um dos vendedores. Troquei duas brejeirices com quem me veio atender e comecei a namorar o pescado. Perguntei preços, vi qualidades, fazendo a minha escolha.
Ao lado, o vendedor instava a cliente: Então D. Vitória, o que é que decide.
Olhei para o lado e vi-lhe o olhar doce dançar indeciso entre o carapau e a garoupa. Como éramos os dois únicos clientes o vendedor não pressionava muito mas, começa a sentir-se que já estava a ficar um tanto ou quanto impaciente. Já eu tinha comprado salmonetes, um belo pregado e ia a entrar no imperador quando, uma leve voz ciciou a meu lado:
É que o meu Joaquim está doente. Há duas semanas que só come carapaus! Já começa a estar enjoado. Pese lá duas postas de garoupa.
A garoupa tinha um ar lindo. Seria a minha próxima compra. Já antecipava as postas grelhadas, a quebrarem-se em lascas plenas de sabor e o vendedor a dizer:
Pois, é, D. Vitória. São onze euros!
Ai, meu deus, disse aflita a senhora. Só tenho dez euros e isto é para comermos toda a semana. Desculpe-me, desculpe-me! Onde é que eu tinha a cabeça? Olhando para mim pedia protecção e que a compreendesse. Não me leve a mal, mas não posso levar essas postas. Faça-me o favor, embrulhe-me apenas uma.
Era tão visível o sofrimento e a humilhação da senhora que o primeiro gesto de irritação do vendedor morreu à nascença. Ainda quis fazer uma gracinha dizendo que com aquele dinheiro podia comprar carapau para duas semanas, mas ficou a meio da frase, siderado pela fugaz compreensão daquele mesquinho drama.
Agarrou na posta de garoupa com que iria fazer brilhar o menu do seu doente, pensando possivelmente o que fazer com os cinco euros restantes para os dias que faltavam da semana arrastando-se devagar, só, frágil e humilhada para a porta da praça.
Todos ficámos uns instantes calados! Depois:
Então o que é que vai mais hoje?
Não ia mais nada. Não poderia ir mais nada. A posta de garoupa solitária sobre a banca era uma espinha cravada no meu dia.
Paguei com notas que queimavam os dedos e saí, atordoado, a pensar que a Maria Vitória, de seu nome, somara mais uma derrota, às quantas mais caladas ao longo da parca vida.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt/
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