Lua Cheia
Ontem, 19 de março de 2011, quase início do equinócio da primavera, dia, também, do maior plenilúnio dos últimos não sei quantos anos, a coligação ocidental abriu as hostilidades aéreas contra a Líbia.
É minha firme convicção, passe embora a subtil lapalissada dos termos, que não se pode julgar do mesmo modo o que em si é diferente. Por isso, entre o receio dos males que possam vir a produzir-se e o conhecimento do que aconteceu e está a acontecer no Afeganistão e Iraque, eu esperava ansiosamente que a resolução da ONU fosse tomada e acatada. Pode parecer incongruência mas eu explico.
O senhor Kadhafi foi, até há uns anos, indubitavelmente, um dos senhores do eixo do mal. Subsidiava terroristas e acometia alvos civis como forma de luta dita de libertação de qualquer coisa. Por estas ações chegou mesmo a ser bombardeado, no seu palácio, pelos aviões de Clinton. Era, para todos os efeitos, considerado um déspota, um ditador e um ser que não respeitava nada nem ninguém. Depois, pelos milagres que podem fazer o dinheiro e o petróleo, este ser esquisito, comprou a respeitabilidade e conseguiu até, retirar da justiça inglesa, o condenado pelo despenhamento do avião inglês em Locherbie. Como diria Pessoa, malhas que o império tece…
Senti-me humilhado quando, convidado a vir a Portugal, todas as impertinências foram permitidas a este ser odioso que passou a sua repugnante figura, em desmedida altivez, perante o olhar bacoco dos nossos governantes, reduzidos a serventes do querer da personagem. Foi pouco dignificante e esteve ao melhor nível de Sócrates.
Depois, com o vento libertário que corre o norte de África as nossas democracias, e quase todos nós, desconfiados embora com a fartura e expectantes sobre os caminhos que cada uma das sublevações poderia tomar, vibrámos com a queda de qualquer ditador e sentimos que a história se construía sob os nossos olhos, numa aceleração que poucos, até aí, concebiam ou desconfiavam. O mundo entrou em delírio e toda a gente falava no efeito dominó. Uns ditadores fugiram, outros soçobravam por falta de apoio das forças armadas e, outros ainda, iniciaram o massacre dos povos que, nas praças, reclamavam os direitos de liberdade e alguma igualdade. Na Líbia, o feroz Kadhafi decidiu afrontar o seu povo. Para tanto utilizou a sua guarda bem armada e contratou mercenários para reconquistar o terreno que os revoltosos tinham ocupado. Passámos a assistir a um combate desigual onde às armas ligeiras se respondia com artilharia e aviação (lembram-se da Palestina?). O ditador oferecia a morte indiscriminada e massiva ao seu “adorado povo”, pelo qual, via-se, nutria o mais profundo desprezo, servindo-lhe apenas para satisfazer os seus caprichos.
Sentia-se ser necessário pôr um travão ao homem e não deixar que a sua psicopatia avermelhasse, com sangue, o mel das areias do deserto. Não respondeu a avisos e continuou desafiante o processo de liquidação dos seus adversários. Mesmo quando recebeu o ultimato, ao melhor nível das verdades governamentais, informou o mundo que tinha mandado cessar-fogo quando, na realidade, acentuou o volume dos ataques. Por isso, ao ver como a resistência em Bengasi soçobrava perante a vaga atacante, vencendo velhos receios e preconceitos, ansiava pela instauração da zona de interdição aérea aos aviões líbios.
Colocava-me, nesta posição, em confronto direto com muitos amigos que, sugestionados pelas invasões já referidas, pensavam que se tratava de um assunto interno e que não deveria, portanto, consentir-se num ato que seria mais uma invasão a um país do petróleo.
É aqui que a diferença se mostra. Para além de não estar prevista nenhuma ocupação terrestre tratava-se, tão-somente, de eliminar a possibilidade de ataques aéreos e de artilharia pesada contra cidades. Nós tínhamos a obrigação moral de não permitir a matança que se adivinhava. Não só porque, no entusiasmo libertário, os conduzimos àquela situação, mas porque as próprias leis, aceites por todas as nações com lugar na ONU, não permitiam que, havendo meios, não se fizesse a proteção das populações em risco.
Sei muito bem, não sou assim tão ingénuo, que se não houvesse petróleo em jogo estas ações teriam sido postergadas até que a liquidação do movimento libertário as tivesse tornado inúteis. Estivemos quase lá, mas a antevisão da necessidade de mais combustível nos mercados, agora que o nuclear vai entrar durante algum tempo em recessão, levou os habituais estrategas do não se faz a pensar de modo distinto. E pronto, ao contrário do que se passa com o Darfur e outras zonas sem o mal cheiroso líquido que faz andar o mundo, a intervenção começou. Por um lado fiquei aliviado porque muitas vidas inocentes serão poupadas e, possivelmente, o ditador poderá ter os seus dias de prepotência e arrogância contados. Por outro, assusta-me a voracidade francesa e o pensamento de que o senhor Sarkozy esteja a ver a possibilidade de reiniciar o velho sonho da direita francesa: voltar a ter um império.
Sou pois a favor, não desconhecendo os perigos, da intervenção limitada das forças da ONU na Líbia onde, ontem, para os meninos de Tripoli e Bengasi, passou, certamente despercebido o fenómeno lunar que nos encantou. Creio aliás que, escondidos no interior das casas e bunkers, ou ofuscados pela luz dos rebentamentos de mísseis, o fenómeno tenha sido não só invisível, como completamente irrelevante.
E, sinceramente, apoiando sem rebuço esta intervenção contida, tenho pena. Tenho mesmo muita pena pela sua absoluta necessidade.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
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