Tramadex, S.A.
A primeira vez que tive a sensação de que estávamos a ficar “lixados” foi quando, no fim dos anos oitenta, integrando uma comitiva de dirigentes de empresas, visitei um centro de formação ligado às indústrias metalúrgicas. Trabalhava então numa grande empresa de Obras Públicas que mantinha um amplo sector de apoio metalomecânico numa imensa nave, onde o ruído de ferro contra ferro, guinchos de fresadoras e tornos, em conjunto com a movimentação de gentes ou máquinas, em ambiente escuro e polvorento, causavam sensíveis perturbações psicossomáticas a quem quer que ali se demorasse. Era o reino do fato de macaco azul, da multidão, da rudeza. Dos variados acidentes causados pela perturbação reinante.
Despertou a minha curiosidade, na visita, uma sala de bom tamanho, francamente iluminada pelas amplas janelas por onde o Sol jorrava sem entraves, onde duas filas de dez máquinas cada – de um lado tornos, do outro fresas - trabalhavam sozinhas, comandadas por dois jovens operadores, de imaculadas batas brancas, que digitavam descontraidamente números em dois computadores situados no início de cada uma das cadeias. Disse-nos o anfitrião que ali estava o futuro. Para além da supressão de mão-de-obra, estávamos perante uma forma de trabalho que não cometia erros de apreciação, que para além de produzir peças à medida e completamente idênticas, ainda calculava o melhor aproveitamento dos materiais. Como disse, percebi então, pela primeira vez, como o radioso futuro se preparava para nos tramar.
Dali saído, em cuidadoso relatório, chamava a atenção para o facto de não podermos deixar de nos actualizarmos e de como era urgente formar os trabalhadores especializados em semelhantes aparelhos para novos modos de produção. Além disso, do ponto de vista das pessoas, seria necessário determinar atempadamente o destino a dar aos trabalhadores restantes. Escusado será dizer que as minhas preocupações, tanto técnicas como sociais, caíram em saco roto. Por isso e outras mais coisas, a empresa foi deixando de ser grande e, como Nova no firmamento, explodiu gloriosamente extinguindo-se sem remédio.
A meio dos anos noventa levou-me o destino e a profissão para a China e Macau. A firma lusitana tinha sociedades com várias empresas chinesas, uma delas situada na região de Cantão. Num tempo morto de uma das minhas deslocações passeava-me pela zona comercial de uma, para os chineses, pequena cidade dessa região, quando vi um belo fato de bombazina verde que me cantou aos olhos. Entro na loja e por quinze contos comprei o fato completo, inclusive com um colete que nunca vesti. Passados uns dois meses, numa das viagens regulares que fazia à Sede da empresa em Lisboa, andando na Baixa, vi numa montra um casaco semelhante ao do fato que comprara. Curioso perguntei o preço. Quarenta e cinco contos! Só o casaco, retorqui. Sim, só o casaco! Pela segunda vez percebi o quanto estávamos tramados, com um futuro muitíssimo complicado a aproximar-se à revelia das nossas preocupações. Desta vez, porém, não disse nada a ninguém, porque de cassandrices já me chegava. Mas sabia, de fonte segura, que o patau nos cairia em cima sem delongas ou benevolências.
Esta gente que nos governa nunca quis, conseguiu ou pretendeu ver, ouvir ou perceber o que o mundo nos guardava. Provavelmente distraídos, certamente preocupados com o seu futuro próprio descuraram o que havia para fazer. Ao trabalho que lhes competia pelos cargos que exercem e a que por vontade própria concorreram, preferiram os faustos de uma emergência social aparente, sustentada sobre quase nada, não se importando com o que aos outros acontecesse desde que eles ficassem ou parecesse que ficavam bem. Por isso fomos apanhados sem defesa pelas crises que se amontoam e soam como trombetas de mudanças próximas, provavelmente cataclísmicas. Somo um povo manso até à inércia mas os rompantes violentos não nos são desconhecidos. Apenas vamos enchendo calados até ao desgarrado grito que já nada tem de racional, antes sendo vaga que arrasa tudo sem discernimento. Com as opressoras medidas que estão a ser tomadas, na crueldade de quem não pensa nos dramas que tais decisões comportam, quem se admira que por aqui, breve, rebentem inauditas violências nascidas no remorder de injustiças e danos causados por desprendidos mandadores?
Não quero de novo ser Cassandra, mas lá que os ventos sensivelmente se acumulam não tenho dúvidas. Que quem os pode amainar se precate e aplaque a prepotente pressão, porque os tempos ao tempo seguirão e desta vez pode ser que a antiquíssima prece sejam mudada e as gentes digam: Pai, nunca tu, nem ninguém, os ouse perdoar, porque eles sabem muito bem o que fazem!
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt