Em louvor dos corruptos, hipócritas e mentirosos
(esta crónica deverá ser acompanhada com o trautear de fundo do Requiem de Mozart)
Era ainda menino quando recebi uma lição que, para mal dos meus pecados, nunca levei muito a sério. Foram precisos muitos anos, muitas escorregadelas e estampanços na dura realidade, para que desse, a esse ensinamento, o devido valor. Tratava-se de uma frase amiúde repetida por um homem inteligente, ou observador, que do alto do seu saber e posição, fazia dos seus ditos regras. Dizia ele, da cátedra de Governador Civil, que no Alentejo, para se ser respeitado, não se podia ter mais que a quarta classe nem menos de quatrocentos porcos. Assim, lapidarmente, completava alguns rifões que têm sido apanágio da cultura popular. Para não ficarem em excessiva curiosidade e poder sobrevir-vos algum stress traumático, aqui vão eles. O primeiro, corroborando inteiramente o dito do senhor Governador é: Este gajo sabe muito, numas versões; ou mais forte ainda: este gajo sabe de mais. E aqui temos o início de uma catilinária de analfabetos funcionais, contra quem se esforça por compreender profundamente as coisas, sendo por isso considerado como uma ameaça para aqueles apenas interessados em aperceber-se do superficial e desde que tal não lhes custe muito esforço. O segundo, dito sempre numa admiração basbaque e dirigido a quantos, sem quaisquer rebuços morais, vivem e prosperam à sombra de chicanas e aldrabices, é o exclamativo: aquele gajo é cá um espertalhaço ou, noutra versão, aquele é que sabe viver.
Aqui temos senhores a explícita dicotomia da nossa agónica civilização. Mas, pergunta-se: numa sociedade possuidora de tantos meios e conhecimentos, como é possível chegar a este ponto de decepção a caminho do desespero? Vêm-me então à ideia o ocaso dos impérios. Sempre na sua agonia existiu a perversa esperança de que os bárbaros viessem e na sua destruidora chegada regenerassem as patologias civilizacionais. O momento antecedente a este desejo insano foi sempre pontuado pela desilusão dos povos perante o desprestígio galopante das suas instituições.
O caminho para tal estado de coisas é lento. Imperceptível no início, desliza depois velozmente, em plano inclinado, até um tão profundo apodrecimento que mesmo a destruição de tudo parece ser mais fácil de suportar, ou transportar mais esperanças, que manter os velhos e desacreditados figurinos. Tudo começa, imperceptivelmente, com a perda de valores solidários. O egoísmo, o enriquecimento próprio, contra tudo e contra todos, institui-se como valor axial e tudo subordina. Que importa que fulano seja um coerente defensor das suas ideias, se isso o não faz enriquecer mais um euro? É pôr de lado, que não interessa a ninguém. Porque os valores são trocados por uma contabilidade a corrupção aparece como forma de consagrar uma nova ordem, novas potências, outras dependências. O poder, até aí utilizado no pressuposto de servir a comunidade, passa a ser unicamente veículo de promoção pessoal. Na estrénua procura de sustentar a sua indefensável posição, o corrupto torna-se hipócrita e, mesmo que profundamente errado e prejudicial, apenas apoia e louva aquilo ou aqueles que podem ser úteis aos seus mesquinhos desígnios. Pretende apresentar a falsidade e traição como verdadeiras virtudes.
A hipocrisia é uma hidra de várias cabeças com um corpo de mentiras. É essencial ao hipócrita dominar a fala de língua bífida. Como um mentiroso se apanha mais facilmente que um coxo, dizem, é preciso, para defender possíveis percalços, preparar um conjunto de seguidores e altifalantes, pagos a bom preço, os quais, pelo ruído e repetição, apoiem descaradamente a sua mentira tornando-a numa verdade. Partem sempre do princípio que o resto do mundo é estúpido e nunca conseguirá aperceber-se do logro em que o querem lançar. Dependendo do poder e do lugar de emissão, o êxito estará, na maior parte dos casos, assegurado.
É claro que as inúmeras contradições surgidas, nunca passíveis de prova concreta e evidente - por mor das cascalhantes companhias interessadas na continuidade dos ardis - vão criando uma atmosfera pesada e incómoda onde toda a gente começa a sentir que qualquer coisa não vai bem, que um mal-estar difuso mas persistente se insinua, cobrindo tudo de cinzas, criando uma ameaça, mais pressentida que manifesta, de permanente inverno. E a gangrena seguirá triunfante o seu caminho.
Devemos ainda referenciar o indispensável apoio dos medíocres. Daqueles que sempre reclamam mais e mais direitos e nada fazem para cumprir os seus deveres. Aqueles que esperam que tudo lhes chegue sem esforço são os apoios necessários e fatais do reino dos corruptos. Sem eles, que publicamente falam contra a corrupção, a hipocrisia e a mentira, mas que nada fazem de útil para a erradicar das suas práticas, a consentem e, na sua pequenez, a apoiam (esperando a migalha caída da mesa dos patronos) a vérmina não poderia subsistir. Mas isso exigiria esforço, claridade e, muitas vezes sacrifícios. Volta-se então ao senso comum do deixe-se estar o presidente da Câmara que, embora roubando faz qualquer coisa, porque ao mudar, não só se arranjam chatices, como podemos lá pôr um que não faça nada. Brilhante conclusão. Justifica tudo. A cobardia, o oportunismo, a menoridade cívica e mental. Por estas estradas vamos desconfiando dos políticos, da justiça, das mais instituições. Fatalistas encolhemos os ombros em trágicas desistências, murmurando, por entre dentes, o que se há-de fazer! Isto foi sempre assim. Já não tem remédio!
Na verdade as análises desta gente de vistas curtas, apenas cotejadoras de conjunturas precárias, parecem dar razão a quem assim pensa. Mas veja-se mais longe. Quantas vezes imensas potestades de sólida implantação, parecendo indestrutíveis, pereceram de supetão. É olhar a história. Não é preciso ir muitos longe para testarmos a razão. Mas atenção, depois de acontecida a queda, os mesmos que impunemente declararam nada haver a fazer, chegam-se-nos aos ouvidos com os impantes “estava-se mesmo a ver”, “eu já tinha dito”, “a mim nunca me enganaram”, “aquilo eram elefantes com pés de barro”! Acordam tarde mas já vêm preparados para arranjar um lugarzinho na nova ordem das coisas onde possam acoitar-se. Se não houver cuidado consegui-lo-ão de novo, porque sempre estarão acocorados aos pés de quem lhes poderá dar alguma coisa, sempre calcarão quem se atrever a denunciar as suas práticas, bajularão os poderes sem reservas, serão mais zelosos que quaisquer outros e levarão, sempre além do requerido, a vontade dos seus novos amos, até ao dia em que os possam transformar naquilo que eles sempre foram: corruptos, hipócritas e mentirosos. É preciso ter muito cuidado com os medíocres. Eles são muitos, não têm medidas nem as regras os coíbem. Correm, por isso, o risco de vencer muitas vezes.
É pois da maior urgência que se louvem os corruptos, os hipócritas e os mentirosos. No fundo, ao semearem a podridão, são eles que, sem de tal se aperceberem, aprofundando a dialéctica dos contrários, fornecem o húmus para a construção da nova história.
Publicado in “Rostos on line” – http://rostos.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário