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março 13, 2009

QUEM MANDA NA MINHA MORTE?





Há poucas semanas, no Brasil, um bispo católico excomungou uma menina de 9 anos, que estava em risco de vida, por gravidez de gémeos, resultante de abusos sexuais do padrasto. Na mesma vezada, para não perder tempo, excomungou também a mãe e, salvo erro, todo o pessoal de saúde que efectuou a interrupção da gravidez. O abusador ficou indemne a esta sanha sancionatória. É caso para dizer: Deus é mesmo macho!

Ultrapassemos este primeiro estágio da indignação, contra as medidas deste parente de Torquemada, e, fazendo das tripas coração, reconheçamos que o bispo nem sequer está errado, em termos de direito canónico.

Efectivamente a Igreja - mal-grado os avanços humanitários do Concílio Vaticano II contrariados pelo actual movimento de contra reforma fundamentalista de Bento XVI - nunca pôs em causa que o principal papel da mulher fosse o de reprodutora da espécie. Nesse sentido pode perceber-se que o risco de morte da mãe fosse considerado como uma contingência natural e que, perante uma vida que se cumpria e outra que prometia vir a cumprir-se, os cânones tivessem a preocupação de assegurar a vida à segunda. Mesmo tentando perceber a situação por este ângulo, não se consegue compreender a lógica do emérito bispo, uma vez que nem a menina era uma vida cumprida, nem estava na idade de ser uma mera máquina de procriação. Também não se entende o silêncio do Vaticano sobre este caso, quando, ainda recentemente, retirou as penas de excomunhão ao bispo alemão que negou o holocausto e ao tristemente célebre fundamentalista católico Monsenhor Lefèbrve.

Portanto, no fundamental arcaísmo onde se instala, Sua Reverência, com todo o poder da Santa Madre Igreja, condenou a pobre criança criança ao anátema.

Risível, dirão, tendo em vista a sensível perda de poder temporal da Igreja. No entanto, aprofundando as intenções emergentes, não podemos esquecer que os factos passam-se na sociedade brasileira, onde as questões de fé têm um peso muito maior que, actualmente, na Europa. Também não me parece ser a família em referência de classe social abastada. Assim, o efeito da excomunhão, visando proibir a qualquer instituição ou membro da igreja o contacto ou apoio ao excomungado, obrigará qualquer cristão, em qualquer momento ou situação, a negar consolo ou apoio ao exorcizado, logo a esta criança e a sua mãe. A miséria e o ostracismo são a face horrível do decreto a que o bispo condenou a vítima. Uma obra plena de misericórdia e caridade, como se vê!

A segunda questão que se me coloca é a do Testamento Vital. Este caso tem andando em discussão. Muito recentemente foi à Assembleia da República e espero que em breve faça parte plena dos nossos direitos. O que é então este testamento? Nada mais nada menos que uma declaração, em vida, sobre os direitos de se dispor do corpo pós-morte ou de consignar que, no decorrer de uma doença ou estado mórbido limite, seja o paciente libertado do encarniçamento terapêutico. Dito por outras palavras, não consignando o direito à Eutanásia, consagra o direito de não se manter uma vida para além dos limites expressos pelo vivente. É um primeiro e importante passo para manter a dignidade do ser humano até ao fim e dentro dos seus próprios critérios.

Une estas duas causas o confessado medo da igreja pela evolução do pensamento - sobre a vida e sobre os direitos inerentes à mesma - que o indivíduo possa ter para determinar o âmbito da sua existência.

O que no entanto mais me revolta é a presunção que esta igreja, cruel, beata e hipócrita, tem ao considerar-se com o direito de intervenção em todas as questões sociais, independentemente do facto de que essas intervenções venham a ter eficácia sobre gente estranha às suas crenças. Os adultos, que de livre vontade entrem para uma confissão, terão de obedecer às suas regras, por mais abstrusas que sejam. Mas, que essa igreja queira submeter aos seus princípios, por melhores que pareçam, quem nada tem a ver com ela, parece-me ser o grave pecado do Orgulho, que a igreja tanto diz que despreza. Contradições!

O próprio Estado, a quem legalmente cabe a preservação da vida humana, terá um comportamento inaceitável e intrusivo se pretender fixar o tempo e o modo da morte de alguma pessoa. Por isso somos contra a pena de morte e, sendo-o, estranho seria que lhe déssemos o poder de contradizer alguém que, no seu perfeito juízo - por razões que só a essa pessoa dizem respeito – decidisse que a sua vida deveria terminar segundo a sua vontade.
A morte é um acto onde estamos sempre e essencialmente sós. É uma sujeição individual e intransmissível. Ninguém pode viver por nós a nossa própria morte. Por isso não reconheço a ninguém, poder ou instituição o direito de decidir, por mim, a forma da minha morte. Morrerei naturalmente quando as circunstâncias da vida a isso me levarem ou quando, essas mesmas circunstâncias, forem de tal modo ignominiosas que me levem a escolher o fim definitivo.

E nunca permitirei que Igreja, instituição, pessoas ou estado, nisso venham a interferir, retirando-me o direito de decidir quando e como será o meu fim. Serei eu, na medida do possível, a mandar no último acto da minha vida. A isto chama-se Eutanásia e é um direito humano que urge estabelecer.


Publicado in “Rostos on line”



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